domingo, 6 de julho de 2014

Vale mais do que ação na bolsa... (Crônica)


- Vó, o que é Petrobras ON?
- Hum... Não sei. Essas coisas tens que perguntar pro teu avô.

 Vó Iris, eu, Vô Alberto em 1989
Era o que eu via num telejornal na longínqua década de 80, no pequeno televisor preto-e-branco do quarto dos meus avós. Deitado na cama, ao lado de minha avó, que não parecia nem um pouco interessada no noticiário, ela desvia o olhar do crochê.

- Se o teu avô não souber o que é, eu é que não vou saber.

E ele também não sabia.

- Marcos, preciso ver e te digo. Outro dia - franziu meu avô aquela testa pensativa de sempre - outro dia eu te respondo.

O "outro dia" foi o dia seguinte, e eu certamente havia esquecido a minha pergunta, do alto de meus oito ou nove anos de idade.

- A Petrobras vende gasolina, e ela é muito grande, muita gente é dona dela. Cada um que tem um pedacinho dela - chamam de "ações", e esses pedacinhos...

Eu, sem entender nada e prestando atenção em tudo, naqueles pedacinhos que valiam dinheiro e que vendiam numa tal de Bolsa, que eu achava que era uma bolsa gigante cheia de notas de milhares de cruzeiros.

Bom mesmo era ver todas as inflexões da sua já velha testa, os gestos, os desenhos firmes de suas mãos enrugadas num caderno puído. Via meu avô discorrer sobre mais um assunto que certamente não dominava, mas procurava saber. Para mim isso era um deleite, de uma grandeza e singularidade sem par. E minhas perguntas eram infindáveis...

"Seu" Alberto, "Seu" Day - como era conhecido na vizinhança - teve a mínima educação para saber ler e escrever. Foi um operário, no sentido estrito da palavra. Trabalhou por toda a vida na mesma tecelagem, e por lá se aposentou. Autodidata, faz-tudo, pedreiro, marceneiro, encanador e eletricista meio a contragosto.

- Detesto levar choque. É a coisa que mais detesto. Posso cortar um dedo ou ter dor nas costas. Mas choque me chateia.

Serviu ao Exército, chegou à cabo, o que lhe era motivo de orgulho, e fonte de histórias saborosas - e talvez um pouco fantasiosas - sobre como um velho jipe das Forças Armadas chegava em casa para buscá-lo à noite.

- Eles me levavam à uma sala do quartel e me mandavam traduzir mensagens interceptadas da Alemanha, pelo telégrafo. Eu era o único que sabia ler em alemão. O Presidente Vargas proibiu o alemão nas escolas, mas eu já sabia ler...

Aí meu avô apontava para uma foto bem pequenina do Hitler que ele guardava "quase" escondido no canto da cristaleira.

- De certa forma ajudei a derrotar esse homem - falava, em tom discreto mas triunfante.

Eu só descobri quem era o cara daquela foto alguns anos depois.

Meu avô não era do tipo bonachão, expansivo ou amistoso. Pelo contrário, era de uma severidade e um rigor sem precedentes, de um formalismo simples e genuíno. Um abraço, um beijo, eram quase tortura para ele. Suas demonstrações de carinho eram bem diferentes.

- Tu estás aqui? Cuidado, podes te machucar. Pega aqui... uns pedaços de madeira e apenas com isto podes brincar. O resto tens que me pedir.

Eu sempre invadia sua oficina, nos fundos daquela casa de madeira, onde ele produzia de tudo. De cabos de enxada, de facas ou facões, bancos e bancadas, mesas, até armários.

- Vô, por que este armário da oficina que o senhor fez é tão pesado?
- Porque ele é bem feito.
- Mas é feio. O que a gente compra é mais bonito - respondi naquela sinceridade que só a infância nos permite.
- Vem cá, deixa eu te mostrar o armário do nosso quarto, que comprei na loja. Olha aqui atrás.

E me mostrava aquele forro feito de madeira mais fina que uma folha de papel. Mole.

- Empurra pra dentro. Olha como é fraca! Olha como se despedaça.
- Vô, mas ele é bonito na frente.
- Pode ser bonito, mas é mal feito. Ou uma coisa é bem feita, inteira, ou ela é mal feita.

Minha irmã sempre pedia para ele fazer um cachorro. Claro, de madeira. Com uma foto de revista ele transferia o contorno do bicho para o papel, depois diminuía ou aumentava a escala, passava então para a madeira, e algumas semanas depois - voilá - eis que surgia o cachorro lixado, lisinho, pronto para brincar.

Mas ele tinha uma obsessão. Fazia Pinóquios. Nunca entendi por que ele fazia tantos. Eu, lendo o livro anos depois, vi que Pinóquio, menino de pau que queria ser perfeito, tornado à vida por um encanto, tinha um sonho de perfeição no desejo em ser uma criança de verdade. No fundo acho que meu avô personificava isto, talvez não a perfeição em si, mas a busca pelo que achava correto, justo e honesto.

Em suas casas tudo funcionava. As portas não rangiam, as facas eram sempre afiadas, as janelas e as gavetas nunca empenavam. Ele se preocupava com isso, com tudo aquilo que tivesse um "defeito" e que pudesse ser "reparado". Do motor de uma enceradeira velha, consertou e diminuiu sua rotação e o montou sobre uma base, para que no Natal o pinheiro rodasse em torno de si mesmo, num movimento delicado.

Certa vez minha avó encafifou que queria morar numa casa que fosse a mesma de sua infância. Como meus avós já haviam vendido a casa de Blumenau, e de tanto ela insistir, meu avô montou uma maquete em isopor daquela morada de 40 anos atrás, usando apenas as reminiscências dela. Em dois anos o isopor já tinha se transformado em alvenaria de verdade, nas mãos dele e de mais um ou dois pedreiros.

Ele adorava uma instituição, seja o Exército da carreira frustrada, ou a Igreja, de uma "carreira" que o levou a ser diácono e celebrar o casamento da própria filha, minha querida tia.

- Teu avô só pensa na igreja e não pensa em mim, Marcos - reclamava minha avó, Da. Iris, amuada.

Mesmo aposentado, meu avô sentia a necessidade de pertencimento, de ser parte de uma coisa ou projeto "dentro" de uma coisa maior. Quando lhe dei meu gorro de selva, com o qual eu havia servido ao Exército na Amazônia, junto com a estrela de segundo tenente, ele deixou escapar uma lágrima.

- Marcos, que orgulho. Eu queria ter sido oficial do Exército, como tu.

Justo eu, vô querido, eu que tanto desdenhava da carreira militar...

Depois que entrei na faculdade de Medicina, virei referência para ele. Assim, podia discutir comigo todas as doenças que ele curiosamente lia num velho livro alemão... Aliás, sua saúde era de ferro. Magro, constantemente se pesava e se o ponteiro marcasse mais do que os 55 Kg habituais, fazia um pequeno regime.

- Marcos, o que é o mal de Chagas?

Quanta responsabilidade! Responder a uma pergunta de alguém que sempre respondeu as minhas... E poderia desfiar aqui outras inúmeras histórias dele, mais ou menos saborosas, que sempre farão parte da minha memória.

Há anos foi-se embora o Seu Alberto, numa das hemorragias intestinais que ele teimava em esconder, no ano em que comecei a me especializar em cirurgia.

Em pouco tempo a terapia me ajudou a reconduzir os personagens da minha vida. Certamente o Vô Alberto é dos mais importantes, pelos exemplos e por preencher muitos dos espaços tão desoladamente vazios da minha infância e adolescência.

A busca incessante pela coerência entre o falar e o fazer foi o maior tesouro que herdei de ti, vô.

Sem esquecer também do medo da eletricidade.
Da habilidade manual que me permite operar.
Do amor a tudo o que é de madeira.
Da letra (que era bonita igual à tua, mas agora está feia à beça).
Da magreza que não tenho dificuldade em manter.
De um certa dificuldade de me expressar sentimentalmente por meio de palavras, senão apenas com gestos.

E, finalmente, de poder saber que o certo é "certo", e errado é "errado". Mesmo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário