Era mais um paciente de final de dia. E os "pacientes-de-final-de-dia" reservam surpresas. Sempre.
Veio sozinho. Aliás, como a maioria das pessoas vem atualmente. Jovem, de seus trinta e poucos anos, não me deixou tempo para notar.
- Sou gay, doutor. E tenho parceiro fixo há muitos anos.
Tinha uma doença venérea, caso de cirurgia, nada muito grave ou urgente.
- Eu li no Google que minha doença é sexualmente transmissível, mas meu parceiro fez os exames e não tem nada. Nunca tive outros parceiros. Não sei de onde peguei. Não entendo...
E começou a fazer conjeturas, esperando que eu aquiescesse.
- E sabes que precisas ser operado, não?
- Sim. E preciso de um favor, doutor. Que não diga nada a minha família. Nada!
Infelizmente eu estou acostumado. Acostumado com famílias que não aceitam seus filhos como verdadeiramente o são.
- Fique tranquilo - respondi. A doença é só tua, e não diz respeito a mais ninguém.
E ele começa a chorar. E eu comecei a entender o porquê.
- Desculpe... O senhor tem um tempinho pra escutar?
Era o mais novo de cinco filhos, havia mais quatro meninas antes dele. Família do interior brasileiro, conservadora, cheia daqueles códigos de conduta que remetem a um Brasil-Colônia teimoso em não se desgarrar do século XXI.
Quando adolescente, descobriu-se "estranho" e "trejeitado", segundo suas próprias palavras.
E começaram as surras. Apanhava do pai, e muito: chicote, corrente, chinelo, cinto. A mãe o defendia poucas vezes e fracamente. As irmãs, alienadas, fingiam não ver.
Fugiu para a metrópole, começou a dar aulas de dança numa escola, onde conhecera o parceiro de até então. E isto foi há uns quinze anos.
- Tanto tempo passou, a sua família não aceita ainda sua opção? Não se "acostumaram"?
- Não, doutor. E se eu tivesse opção, eu não seria gay.
Passadas algumas semanas eu o operei, mas não sem antes receber na sala de cirurgia a expressa recomendação:
- O senhor prometeu não comentar nada.
- Claro. Prometido.
E nem precisava. Ao terminar o procedimento, ninguém estava lá para receber notícia nenhuma. Nem no dia seguinte, da alta.
- Não veio ninguém, doutor, nem meu companheiro - falou, cabisbaixo.
E no retorno ao consultório, alguns dias depois, sozinho como sempre, me pede um abraço, prontamente aceito.
E chora novamente.
- Obrigado, doutor. Obrigado por me tratar como uma pessoa normal.
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