Eu tive um cachorro, e há anos não tenho. Como um grande amor e um carro, acho que o homem tem apenas um cachorro durante a vida. Outros bichos que vierem depois nunca serão como ele, que servirá sempre de parâmetro de comparação, lembrado com a frase que começa assim: "Ah, mas 'aquele' era diferente..."
Meu cão se chamava Pakito (não confundir com um integrante do grupo da Xuxa Meneghel da década de 90). Era um puro vira-latas, preto, porte médio, que lembrava vagamente um pastor alemão. Tinha as patas marrons, enormes (pelo menos para mim). Não sei exatamente como ele veio até nós, se pelas mãos de meu pai ou da minha mãe, mas ele já era grandinho e eu contava com uns cinco ou seis anos.
Pakito tinha uma energia inacreditável, mesmo para um filhote. Ele corria, corria, e corria. Minha mãe ralhava e pedia para prendê-lo na corrente. Quando ela virava as costas, eu o soltava. Nada o segurava. Nenhum portão, nenhuma grade, nenhum muro. Ele sempre encontrava um jeito de pular. Tentava de todos os modos até conseguir seu intento. Mas sempre voltava, com o rabo entre as pernas, com aquela cara de "fiz uma travessura, mas não foi por mal". Lógico que eu não brigava com ele. Aliás, ele não me incomodava, apenas aos carteiros...
Nunca ficou doente. Só tomava as vacinas rotineiras (por incrível que pareça, comportadamente) e mais nada. Comia de tudo: restos de comida, e um "grude" que eu mesmo cozinhava (a ração naquela época era cara demais para nós) composto de arroz "para cachorro", cabeça, pé e pescoço de frango. Essa mistura era feita numa panela enorme e seu fedor contaminava a casa inteira. Mas ele comia com tanto gosto e voracidade que parecia filé mignon.
O cocô do Pakito era preto, marrom bem escuro, diferente dos cocôs "amarelo-ração" dos cães abestalhados de hoje em dia.
Ele acompanhou a minha infância e adolescência. Duas mudanças de casa, separações, brigas e desafetos. Só ele era uma constante na minha vida. Não era costume deixá-lo entrar em casa, mas em dias de trovoadas ou fogos de artifício ele se escondia debaixo da velha máquina de lavar de madeira, assustado que ficava.
Um dia, Pakito fugiu e demorou a voltar. Pensei que tivesse se enrabichado com alguma cachorrinha, e nada mais. Já era "velho", contava talvez doze anos, pêlos do focinho brancos e dentes gastos. Mas a energia, essa não desligava nunca. Todos que não o conheciam notavam a agilidade do "filhote de pastor alemão".
Um dia e meio. Ele não voltara. Fui procurá-lo pela vizinhança, e nada. "Ele vai voltar", pensava. Rondando o terreno da nossa casa, notei uma patinha marrom entre os pés de bananeira.
"Safado, dormindo na sombra das bananeiras neste calor!". Chamei, não vinha. Aproximei. Ele estava estirado, quatro patas retesadas, espástico, língua de fora, olhos abertos. Deitado. Gelado. Ao seu lado, um belo filé de carne de não-sei-o-quê, podre, e provavelmente envenenado.
Eu tinha uns catorze, quinze anos. Sol a pino. Meio-dia. Eu trabalhava à tarde.
Simplesmente não conseguia chorar. Aliás, demorei três dias para começar a chorar compulsivamente - e sozinho. Até lá, eu pensava, com ódio, no filho da p... que teve a coragem de fazer aquilo.
“Por quê?”
Cavei com uma pá o buraco mais fundo que minha magreza frágil pôde fazer. No quintal. Carreguei Pakito nos braços, numa tristeza que eu não consigo aqui descrever.
Tristeza e deferência.
O buraco não era tão grande. Suas patinhas, agora frágeis, ficariam de fora. Retirei seu corpo, cavei mais fundo. Mais do que podia. Muito mais do que queria.
Sem chorar. Os punhados de terra por cima dele eu os lembraria de cor. Praguejava em silêncio contra aquele que tinha matado meu melhor amigo, que viesse também a morrer da forma mais vil e repulsiva.
Três dias sem chorar. De incompreensão.
Foi meu primeiro contato com a morte de um ente querido. Aprendi que as pessoas, mesmo boas pessoas, não ficam conosco para sempre, e que elas podem ir embora sem dizer adeus e nos deixar sós. Como num passe de mágica.
Órfão.
Aprendi que existe maldade gratuita e indiferente. E não podemos controlar isso.
Hoje eu como o arroz que ele comia. Mas eu chamo de arroz integral. Fede do mesmo jeito quando cozido.
Se eu pudesse pedir uma só coisa bem egoísta para Deus, eu pediria que não tivessem matado o Pakito. Queria ele sempre comigo, durante a faculdade, o Exército, as minhas inúmeras mudanças de casa e de cidade. A vida era mais fácil com ele.
Mas, pensando bem, ele não mereceria morar trancafiado num apartamento. Muito menos em São Paulo. Muito menos comendo ração e fazendo cocô amarelo. Seria insuportável para ele.
Pakito merece o quintal enorme da casa da Rua Tenente Antônio João, e merece o quintal não tão grande da casa da Rua Santo Agostinho, onde hoje ele descansa em paz.
Essa semana eu sonhei com ele. Sonhei que estava no Céu; eu tinha morrido também, e ele estava lá me esperando. Pakito corria como sempre; corria como nunca.
Pra comemorar o reencontro, eu cozinhava numa panela o mesmo “grude” fedorento, feito de arroz pra cachorro, cabeça, pescoço, e pés de galinha.
(Este abaixo não é o Pakito. Infelizmente não tenho foto dele: este cão é muito próximo de sua aparência)

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