sexta-feira, 25 de julho de 2014

Carta aberta ao Papai Noel (2012)



Prezado velhinho,

Deve lhe causar certa estranheza uma carta de "gente grande", pedindo qualquer coisa, em meio a pedidos tão mais importantes das crianças. Não, não quero um videogame nem uma bicicleta, tampouco ganhar na loteria. Meu pedido é singelo, e para tanto precisaria eu, adulto, pegar uma máquina do tempo; e como nos filmes, voltar ao passado - como mero espectador da minha infância.

E lá eu veria uma menino gordinho, nascido no interior de Santa Catarina, com certa dificuldade e sofrimento da mãe, pelo parto normal.

Já em outra cidade, não vejo esse menino lembrando de seus pais juntos. Numa casa simples de madeira, muito aconchegante, vejo-o agora brincando num quintal que parecia infinito, em meio a goiabeiras, galinhas, cachorros... Ora montado numa motoquinha, ora empurrando o carrinho de bebê de sua irmã, loirinha, que acaba de nascer.

Debaixo do chão da casa o menino construía... casas. De pedaços e sobras de madeira. E de sonhos. E de exemplos do avô faz-tudo: marceneiro, carpinteiro, encanador, eletricista...

Ele aprendera a ler muito rápido; a mãe o ensinara antes da escola. Sempre com um elefantinho encardido, de pelúcia, a tiracolo.

Menino, mãe, irmã... E só. Seria assim por um bom tempo. Agora em outra casa, de cimento e telhado firmes, ele cuidava da pequena, enquanto a mãe trabalhava.

Cuidando e aprontando traquinagens, sempre repreendidas duramente, mas raramente repreensíveis. Desenhava casas, figuras geométricas no papel.

O bicho de pelúcia havia se perdido na mudança. O cachorro querido, de doze anos de idade, fora envenenado por algum vizinho.

O menino enterrou o cachorro - enorme - no quintal.

Logo depois a família de três junta-se a outra família. Novas relações. Novos reveses. Trabalhando desde muito cedo. Trabalhando e indo à escola. Trabalhando muito.

As casas sumiram dos desenhos. Apenas figuras geométricas.

Depois o menino cresce, vem a faculdade e a vida adulta. E eu desembarco da minha viagem, no hoje.

O senhor pode pensar, querido Noel, que com essa história talvez eu queira lhe pedir para "refazer" o passado. Não é o caso.

Tudo o que eu queria era dar um abraço nesse menino, fazendo as pazes com ele.

Feliz Natal.
Marcos.


quarta-feira, 16 de julho de 2014

Os bairros de São Paulo...


O pouco que aprendi em São Paulo, pelos cheiros dos bairros.

Moema, onde moro, cheira a cocô de cachorro. Ocasionalmente, a suvaco de quem está correndo ou Cheetos Bolinha das crianças no Ibirapuera.

Pinheiros cheira a ovo podre, dia e noite, graças às "límpidas" águas do rio de mesmo nome.

A Moóca cheira a carvão queimado das pizzarias e casas de massa.

O Centro cheira a mijo.

A Vila Madalena, reduto dos bichos-grilo, cheira à maconha. Toneladas.

Santa Cecília cheira a chulé, muitos moradores de rua ali.

Jardins cheira a perfume doce, das senhoras que passam pra cima e pra baixo com suas sacolas de letreiros chamativos.

Itaquera cheira a Corinthians.

Perdizes cheira à embreagem queimada, tanto que os motoristas sobe e descem as ladeiras.

Vila Prudente cheira a concreto.
Só tem obra por ali.

O Campo Belo cheira à querosene de avião.

O Brooklin quer cheirar como Manhattan, mas nem nesse cheiro consegue. No máximo à fumaça de escapamento...

segunda-feira, 14 de julho de 2014

"Peraí... Não foi bem assim... O senhor sabe como é, né?"



E numa repentina abordagem no estacionamento de um hospital nem tão perto daqui...

- Por favor, um minuto! O senhor é médico? Estou DE-SES-PE-RA-DO. Me ajude, pelo amor de Deus.
- Sim, pois não?
- Eu acabei de receber o resultado da biópsia da cirurgia da minha hemorróida e não consigo falar com meu médico... Estou angustiado - abre o envelope e me mostra - aqui diz que eu tenho HPV. Acabei de ver no Google que isso é verruga contagiosa e que é comum em viado. Mas eu não sou viado!
- Calma...
- Como isso foi parar lá dentro do meu c*?
- Bem...

Ligo o módulo "cara de paisagem".

- Eu não sou gay! Sou casado, tenho filhos e esposa!! Não vá o senhor me dizer que eu sou gay!

- Não falei nada... Mas o senhor há de convir comigo que de alguma forma esse HPV chegou "lá"...

E aquele senhor de meia-idade faz cara de pensativo, como que acessando arquivos longínquos da mente.

- Bem, doutor, só se foi naquele dia em que saí com umas meninas... O senhor sabe como é, né? E mão naquilo, aquilo na mão...
- Não sei não.
- E acho que elas passaram então alguma coisa por ali, na região, por trás, pode ser?
- Tudo pode nessa vida.
- Ah, doutor! - E me abraça aliviado. Como o senhor esclareceu tudo pra mim! Muito obrigado! Como é seu nome mesmo?
- Marcos. Não esqueça de retornar com seu médico.
- Posso marcar uma consulta com o senhor?
- É que sou Gastro.
- Ahhhh... Entendi. Estômago, né? Mas muuuuito agradecido mesmo assim, tirou um peso das minhas costas!
- Às ordens.

E seguiu seu caminho, mais leve, cantarolando até. Coitadas das "meninas", levaram a culpa dele.

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Dr. Marcos Claudio Radtke CRM 107503
Cirurgião do Aparelho Digestivo - Gastro e Oncologia, na Zona Sul de São Paulo.

Contato: 

Clínica Rhazis (clinica.rhazis@gmail.com)

Fone: (11) 5041 5507
Alameda dos Maracatins, 1435 - Conjunto 1009 - Moema - São Paulo - SP
CEP: 04.076-011

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segunda-feira, 7 de julho de 2014

Risadas de Vida... (2012)

Como trabalho muito próximo do Hospital da A.A.C.D. (Associação de Assistência à Criança Deficiente), sempre fico parado devido ao trânsito intenso dali.


Aproveito a oportunidade para observar a saída do hospital, sua fila interminável de ambulâncias, mães humildes carregando seus filhos deficientes, com inúmeras dificuldades - cadeirantes, acamados, sondados, tetra ou paraplégicos...

Hoje, vi na calçada uma cena digna de nota: uma adolescente, amputada bilateralmente na altura das coxas, andando com próteses simples, empurrando uma cadeirante, que deveria ter semelhante idade (e antes que me perguntem: não, não tirei nenhuma foto para postar no Facebook perguntando hipocritamente "quantas curtidas essas guerreiras merecem"). Percebi que conversavam animadamente sobre qualquer coisa que - aposto - não deveria ser assunto "doença". Sorriam e gargalhavam.

E de repente, o trânsito fluiu e eu acelerei.

Deduzo com este episódio que a linha tênue que (espero) ainda afastar o gênero humano da barbárie e da bestialização total é o apreço e cuidado que conseguimos nutrir pelas nossas diferenças.

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Dr. Marcos Claudio Radtke CRM 107503
Cirurgião do Aparelho Digestivo - Gastro e Oncologia, na Zona Sul de São Paulo.

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Fone: (11) 5041 5507
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domingo, 6 de julho de 2014

"Mas o senhor não tem um cachorro?" (2013)

"Mas o senhor não tem um cachorro?"

Eu tive um cachorro, e há anos não tenho. Como um grande amor e um carro, acho que o homem tem apenas um cachorro durante a vida. Outros bichos que vierem depois nunca serão como ele, que servirá sempre de parâmetro de comparação, lembrado com a frase que começa assim: "Ah, mas 'aquele' era diferente..."

Meu cão se chamava Pakito (não confundir com um integrante do grupo da Xuxa Meneghel da década de 90). Era um puro vira-latas, preto, porte médio, que lembrava vagamente um pastor alemão. Tinha as patas marrons, enormes (pelo menos para mim). Não sei exatamente como ele veio até nós, se pelas mãos de meu pai ou da minha mãe, mas ele já era grandinho e eu contava com uns cinco ou seis anos.

Pakito tinha uma energia inacreditável, mesmo para um filhote. Ele corria, corria, e corria. Minha mãe ralhava e pedia para prendê-lo na corrente. Quando ela virava as costas, eu o soltava. Nada o segurava. Nenhum portão, nenhuma grade, nenhum muro. Ele sempre encontrava um jeito de pular. Tentava de todos os modos até conseguir seu intento. Mas sempre voltava, com o rabo entre as pernas, com aquela cara de "fiz uma travessura, mas não foi por mal". Lógico que eu não brigava com ele. Aliás, ele não me incomodava, apenas aos carteiros...

Nunca ficou doente. Só tomava as vacinas rotineiras (por incrível que pareça, comportadamente) e mais nada. Comia de tudo: restos de comida, e um "grude" que eu mesmo cozinhava (a ração naquela época era cara demais para nós) composto de arroz "para cachorro", cabeça, pé e pescoço de frango. Essa mistura era feita numa panela enorme e seu fedor contaminava a casa inteira. Mas ele comia com tanto gosto e voracidade que parecia filé mignon.

O cocô do Pakito era preto, marrom bem escuro, diferente dos cocôs "amarelo-ração" dos cães abestalhados de hoje em dia.

Ele acompanhou a minha infância e adolescência. Duas mudanças de casa, separações, brigas e desafetos. Só ele era uma constante na minha vida. Não era costume deixá-lo entrar em casa, mas em dias de trovoadas ou fogos de artifício ele se escondia debaixo da velha máquina de lavar de madeira, assustado que ficava.

Um dia, Pakito fugiu e demorou a voltar. Pensei que tivesse se enrabichado com alguma cachorrinha, e nada mais. Já era "velho", contava talvez doze anos, pêlos do focinho brancos e dentes gastos. Mas a energia, essa não desligava nunca. Todos que não o conheciam notavam a agilidade do "filhote de pastor alemão".

Um dia e meio. Ele não voltara. Fui procurá-lo pela vizinhança, e nada. "Ele vai voltar", pensava. Rondando o terreno da nossa casa, notei uma patinha marrom entre os pés de bananeira.

"Safado, dormindo na sombra das bananeiras neste calor!". Chamei, não vinha. Aproximei. Ele estava estirado, quatro patas retesadas, espástico, língua de fora, olhos abertos. Deitado. Gelado. Ao seu lado, um belo filé de carne de não-sei-o-quê, podre, e provavelmente envenenado.

Eu tinha uns catorze, quinze anos. Sol a pino. Meio-dia. Eu trabalhava à tarde.

Simplesmente não conseguia chorar. Aliás, demorei três dias para começar a chorar compulsivamente - e sozinho. Até lá, eu pensava, com ódio, no filho da p... que teve a coragem de fazer aquilo.

“Por quê?”

Cavei com uma pá o buraco mais fundo que minha magreza frágil pôde fazer. No quintal. Carreguei Pakito nos braços, numa tristeza que eu não consigo aqui descrever.

Tristeza e deferência.

O buraco não era tão grande. Suas patinhas, agora frágeis, ficariam de fora. Retirei seu corpo, cavei mais fundo. Mais do que podia. Muito mais do que queria.

Sem chorar. Os punhados de terra por cima dele eu os lembraria de cor. Praguejava em silêncio contra aquele que tinha matado meu melhor amigo, que viesse também a morrer da forma mais vil e repulsiva.

Três dias sem chorar. De incompreensão.

Foi meu primeiro contato com a morte de um ente querido. Aprendi que as pessoas, mesmo boas pessoas, não ficam conosco para sempre, e que elas podem ir embora sem dizer adeus e nos deixar sós. Como num passe de mágica.

Órfão.

Aprendi que existe maldade gratuita e indiferente. E não podemos controlar isso.

Hoje eu como o arroz que ele comia. Mas eu chamo de arroz integral. Fede do mesmo jeito quando cozido.

Se eu pudesse pedir uma só coisa bem egoísta para Deus, eu pediria que não tivessem matado o Pakito. Queria ele sempre comigo, durante a faculdade, o Exército, as minhas inúmeras mudanças de casa e de cidade. A vida era mais fácil com ele.

Mas, pensando bem, ele não mereceria morar trancafiado num apartamento. Muito menos em São Paulo. Muito menos comendo ração e fazendo cocô amarelo. Seria insuportável para ele.

Pakito merece o quintal enorme da casa da Rua Tenente Antônio João, e merece o quintal não tão grande da casa da Rua Santo Agostinho, onde hoje ele descansa em paz.

Essa semana eu sonhei com ele. Sonhei que estava no Céu; eu tinha morrido também, e ele estava lá me esperando. Pakito corria como sempre; corria como nunca.

Pra comemorar o reencontro, eu cozinhava numa panela o mesmo “grude” fedorento, feito de arroz pra cachorro, cabeça, pescoço, e pés de galinha.

(Este abaixo não é o Pakito. Infelizmente não tenho foto dele: este cão é muito próximo de sua aparência)

Almoço em família

O tradicional "almoço em família" mudou. Agora, os membros da família, ao invés de almoçar confortavelmente na casa da vovó ou do sogrão, preferem espremer-se nas mesas sujas e estreitas dos shoppings, estrategicamente pré-reservadas com bolsas e/ou crianças. Cada um escolhe um prato diferente: papai vai de carne e chopp, mamãe de comida japonesa e suco, filhos de McDonald's; já os avós demoram um pouco mais na fila do restaurante "por quilo" que exala cheiro de óleo. Ninguém conversa sobre nada, afinal há preocupações maiores, sejam com o telefone celular, onde colocar o carrinho das compras e as sacolas, o medo de roubar as bolsas das mulheres, os planos para as visitas a mais lojas. Após comer a comida cara e de baixa qualidade, a matilha se levanta num só movimento: e as bandejas, copos, talheres, guardanapos, restos de comida... Estas ficam sobre as mesas, talvez como ficariam se estivessem em casa.

O meu Diário da Luta contra o Câncer

Ontem foi o Dia Mundial da Luta contra o Câncer. Eu não sabia exatamente o que escrever, talvez não saiba ainda, mesmo estando cotidianamente na linha de frente desta batalha. Só me vêm à mente o rosto de todos os pacientes que passam ou que passaram por mim, muitos deles hoje descansando em outro plano de vida. A despeito da evolução dos tratamentos e do diagnóstico precoce, as questões humanas continuam as mesmas, frente ao sofrimento de um estigma difícil de mudar (e de se responder).
"Por que aconteceu comigo?"
"É muito grave?"
"Vou ficar bom um dia, doutor?"
"E minha família sem mim, como vai ficar?"
"Como vou viver sem ele(a)?"
"E meus filhos?"
"E minha esposa?"
"Eu quero muito viver, doutor."
"A cirurgia foi bem?"
"Doutor, eu só peço a Deus para não sofrer."
.
.
.

Eu preferiria ficar internado...

- Eu prefiro ficar internado.
- Mas não há necessidade, por isso, por aquilo... Acredito que seja melhor cuidar do senhor em casa. Depois, podemos reavaliá-lo...
- O senhor não entende, Dr. Marcos. Ninguém tem tempo de cuidar de mim lá em casa, e eu não consigo mais me cuidar sozinho. Faz tempo!

(No fundo eu entendo).

Pobre Medicina para Pobres

Governo Federal ensaia contratar médicos estrangeiros, sem revalidação adequada de seu diploma e por conseguinte da sua formação básica, para atuar em rincões distantes das grandes capitais.

Fico pensando aqui, cá com meus botões, que o MEC não consegue nem avaliar as escolas médicas brasileiras atuais, deixando frouxa a formação de milhares de profissionais que estão entrando desordenamente no mercado de trabalho, quiçá avaliar uma formação fora do país...!

Esta leniência criminosa penaliza a população mais pobre, claro, que não tem escolha nem discernimento do que haveria de ser um bom ou mau médico, ou de um sistema de saúde minimamente eficaz.

Não prego reserva de mercado. Não desejo mais, mas melhores médicos, que, já falei há tempos, não promovem saúde; combatem doenças...

Novamente, Medicina pobre, para os pobres.

As conformidades...

A espera do paciente pode ser longa; a dor intensa; o desconforto, contínuo; o atendimento, displicente; a atenção, negligente. Mas, quem realmente se importa, se os papéis, estes sim, estão preenchidos perfeitamente? As conformidades, alcançadas? As metas, cumpridas? As tabelas, adequadas?

"Mais médicos"

Estou de saco cheio desta história dos médicos cubanos, mas vamos lá.

Os EUA são uma potência médica porque atraem os melhores médicos para dentro de suas fronteiras. É engraçado ver que os cirurgiões mais hábeis não são os norte-americanos natos, e sim latino-americanos, hindus, paquistaneses...

Os EUA são uma potência médica, não uma potência em saúde. 40 milhões de americanos não tem NENHUMA assistência de saúde. Vivem ao Deus-dará.

Assim, pouco importa trazer médicos do país X ou Y, pois a incompetência, ao contrário da sabedoria, é universal: ampla, geral, irrestrita.

Fatos irrefutáveis: 1. Não temos médicos no interior do Brasil; 2. Não formamos médicos minimamente competentes; 3. Temos excesso de escolas médicas ruins; 4. Temos médicos mal distribuídos pelo território nacional; 5. (e mais importante): não temos um sistema de saúde eficiente, de complexidade crescente, com referência e contra-referência, focado na atenção básica e preventiva, pois o SUS ainda não saiu das boas intenções do papel, carcomido pela gestão incompetente, fraudulenta, corrupta e leniente dos seguidos governos de todos os partidos.

Os médicos estrangeiros, futuramente importados sem passar pela alfândega mínima da revalidação do diploma, serão uma solução paliativa, eleitoreira, temporária e arriscada, apenas para o fato número 1.

TODO o resto que se dane. Aliás, que se dane, não, já que atualmente estamos caminhando na seguinte direção:

Para o fato 2, ato contínuo de abertura de escolas médicas sem critérios, ou aliadas a critérios fisiológicos e políticos regionais.

Para o fato 3, falta de cobrança/competência/punição nas avaliações do MEC.

Para o fato 4, ausência de condições de trabalho fora de cidades médias ou grandes. Um bom médico trabalha com recursos. Prefeituras do interior pagam até 30 mil reais por mês, e conseguem segurar bons profissionais por no máximo dois anos.

Donde se conclui que tudo deriva do fato 5.

Aí eu volto aos EUA. Eles têm a melhor Medicina, não a melhor Saúde. O problema da Saúde no Brasil é sistêmico, não pontual.

Acordem, gente. Médico virou "commodity" faz tempo. Nós médicos somos iguais à soja, minério de ferro, trigo, café, cobre, ouro, zinco. Temos cotação, variamos de acordo com o mercado. Não acham médicos pra trabalhar no interior por 20 mil reais ao mês? Ora, procurando bem acha-se até quem trabalhe por menos. E talvez sem exigir essas "besteiras" todas relacionadas ao sistema de saúde. Basta um carimbo. Basta uma caneta. Basta um estetoscópio. Fácil.

Ah, fatos, fatos. Pra quê saber a causa da febre? Troca-se o termômetro. Culpa-se o doente. A gente acha termômetro ruim. A gente acha doente sem febre.

Como sempre.

A "modernidade" da Medicina

Os arautos da tal da modernidade da Medicina me aborrecem, porque parecem desconhecer a História.

Hoje, por exemplo, é o "Dia Mundial do Combate à Infecção Hospitalar". Pois bem, século XXI, antibióticos, quimioterápicos, cirurgias robóticas e marketing à parte, ainda olhamos com certa estranheza para a MESMA placa do Dr. Semmelweis, posta à porta da maternidade do Hospital de Viena:

"A partir de hoje, 15 de maio de 1847, todo estudante, ou médico, proveniente da sala de anatomia, é obrigado, antes de entrar nas salas da clínica obstétrica, a lavar as mãos, com uma solução de ácido clórico, na bacia colocada na entrada. Esta disposição vigorará para todos. Sem exceção." (I.F. Semmelweis).

Sem saber da existência de bactérias, Semmelweis deduziu que as infecções ("febres", muitas vezes letais) das mulheres no pós-parto derivavam da inobservância da higiene das mãos dos médicos e estudantes de medicina, que numa sala dissecavam cadáveres para logo em seguida examinarem as gestantes. Ele ampliou sua observação, verificando também que pacientes vivos e não só cadáveres poderiam transmitir as tais febres para pacientes saudáveis. Conseguiu, assim, diminuir a mortalidade por este tipo de infecção para menos de 2%, ante 20% previamente à lavagem de mãos.

Mesmo com estes dados irrefutáveis, Semmelweis foi ridicularizado pelas sociedades médicas da época, sendo que suas recomendações só foram aceitas quase 15 anos depois...!

Enxugar gelo...

"Enxugar gelo" é também uma das minhas especialidades, sobrepondo-se muitas vezes à videocirurgia ou à oncologia cirúrgica.

Quando se opera mais um jovem vítima da violência por arma de fogo, de nada adiantam anos e anos de treinamento, destreza ou objetividade extrema para se fazer o que preciso for, no momento mais crítico de uma vida que se deita inconsciente sob a luz fria de uma sala de operação.

Pois o tiro é mais rápido que a mão do cirurgião.

Minha toalha não dá conta do iceberg, nem das lágrimas de um pai e uma mãe inconsolados.

Mais de supermercado...

Feito um seguidor de determinadas religiões, começo a crer no Capeta/Belzebu/Tinhoso, que tem feito das suas, especialmente quando criou, aqui na Terra (vide meu grande amigo Adrián Varela), o hipermercado.

Hipermercado é uma subseção do inferno, no mínimo sua ante-sala ou pelo menos um purgatório. Diz-se que é lugar enorme, geralmente mal localizado na cidade, em que se estaciona para além do Sistema Solar, e para onde se dirigem toda a sorte de munícipes em busca de produtos de subsistência (ou não) a preço mais baixo (ou não).

Lá é mais fácil encontrar uma barraca de camping do que seu azeite de oliva preferido. Aliás, a barraca de camping está mais perto do Nescafé que do seu azeite - mas para descobrir isso já se andou pelo menos uns dois quilômetros.

Os cheiros predominantes variam: de Cheetos Tubinho à putrefação da carne em promoção, esta anunciada incessantemente nos alto-falantes por alguém que não consegue conjugar um verbo nem aplicar um plural. Isso sem falar no cheiro de desodorante ardido, perfume doce, ou axilas suadas.

Desvia-se de tudo: da senhora gorda "experimentando" as uvas da gôndola (e oferecendo à sua filha); de algum funcionário andando freneticamente de patins quando toca a sirene do caixa quando o cartão é negado; do carrinho de compras cheio, "esquecido" estrategicamente no meio do corredor.

Todas as ofertas são imperdíveis, da salsichinha mergulhada em conservantes cancerígenos até a batedeira de brinquedo "made in China".

Todas as filas de caixa demoram. Especialmente a sua. Especialmente o "caixa rápido de apenas X volumes". E na vez daquela senhora gorda, que está justamente à sua frente, ela vira pra trás e diz em alto e bom som que se esqueceu de um item importante (a lata de Toddy/o xampu de Jojoba/a farinha láctea) e pede para a filha ir buscá-lo... "Pode esperar um minutinho?". Enquanto isso, ela recarrega os créditos do celular pré-pago, e pega um papelzinho no bolso porque não sabe o número do próprio telefone de cor.

Após valiosas horas perdidas e muitas sacolas plásticas (cada vez mais finas e frágeis) que se rasgam no calvário rumo ao estacionamento, a gente pragueja. Nem pensa em devolver o carrinho à loja, até porque, ao se aproximar do próprio automóvel, antes tem-se de retirar um ou mais carrinhos vazios que algum munícipe colocou de sacanagem para que não se consiga abrir o porta-malas.

Jura nunca mais voltar. Jura comprar no mercadinho perto de casa, pensando estimular o pequeno comerciante. Jura só... até o próximo mês.

"Diabos, esqueci de validar o tíquete do estacionamento!"

36 anos...

Hoje estou mais perto dos 40 que dos 30 anos.

Foi bastante simbólico passar a zero hora do meu aniversário aqui, trabalhando e discutindo os casos dos pacientes com os médicos residentes, cirurgiões em formação. Nem percebi que já era meu aniversário, apenas quando um dos colegas me cumprimentou.

Eu até poderia reclamar disso tudo e talvez seria este o meu lugar-comum há algum tempo.

Mas não.

Passei 35 anos da minha vida me perguntando TODOS os dias:

O que quero realmente ser quando crescer?

A Medicina veio na adolescência quase por acidente, excluídas sistematicamente as demais carreiras que eu considerava enfadonhas.

Já a Cirurgia veio no final da faculdade, feito veneno, de uma cobra que me apareceu nos últimos meses de minha formação.

Olhando o filme da minha vida em retrospecto, vejo que eu não planejei muito nenhum caminho.

Aos 36 anos, mais velho e um tanto grisalho, trabalhando no que gosto sem me cansar, mais feliz e algo sereno, já sei a resposta à minha pergunta.

Quero continuar a estudar e a ensinar médicos; ganhar um mundo de alunos-filhos-residentes-cirurgiões e ser chamado, quem sabe um dia, de professor.

Conflito. Ou falta de conflito.

Conflito. Ou melhor, falta de conflito.

O Brasil teimava em não compreender (pelo menos até as manifestações atuais), desde as capitanias hereditárias, que ele reproduz ciclicamente um conluio entre o público e privado, alternando grupos diversos que, uma vez no poder, se comportam de maneira semelhante.

Nossa eterna tendência (ibérica, diga-se de passagem) em encampar todos os interesses em torno da manutenção do "status quo", fugindo do embate necessário, leva o país a ter direção... nenhuma. Sinceramente não sabemos o que queremos, e nem para onde vamos. Potência educacional? Científica? Industrial? Agrícola? Coroa ou colônia?

Engraçado observar, ao contrário de grandes nações, que historicamente nós não tivemos guerras civis. Nem guerras mundiais. Nem hecatombes nucleares. Nem desastres naturais. Nada que unisse um povo em torno de um objetivo comum.

Resta nos unirmos em torno de objetivos abstratos, tão caros e agora tão claros... Decência, ética, cidadania.

E, sim, por meio de conflitos inerentes e necessários.

Faltam Médicos no Brasil...

Sim, faltam médicos no Brasil.

Faltam médicos para trabalhar nos rincões distantes, recrutados por prefeituras corruptas que depois de três meses dão o calote e não pagam salário nenhum.

Faltam médicos para trabalhar nos grandes centros, para receberem no máximo R$ 50 (brutos) por uma consulta de convênio.

Faltam médicos para trabalhar nas periferias de grandes centros, em hospitais superlotados que internam pacientes sentados em cadeiras.

Faltam médicos para trabalhar em hospitais glamourosos, sem contrato de trabalho, sem vínculo empregatício, sem pagar plantões à distância.

Faltam médicos para trabalhar em equipes médicas diversas, onde um dos médicos explora o trabalho de outros médicos.

Faltam médicos para trabalhar no Estado, ganhando R$ 1890 por 20 horas semanais.

Faltam médicos para trabalhar no Município, ganhando R$ 1790 por 20 horas semanais.

Para este tipo de "Saúde", espero que continuem faltando médicos. Indefinidamente.

A moça da limpeza (2012)

Depois de limpar seis vezes a mesma sala de cirurgia naquela manhã, pergunto à funcionária da limpeza:

- Da. Fulana, a gente operando e a senhora limpando... Não fica enjoada disso?

Cabisbaixa, um tanto tímida, logo levanta o olhar e o desvia para longe do meu.

- Olha, Dr. Marcos, e o senhor não enjoa de operar? Cada um na sua profissão, e todo mundo junto fazendo a "coisa da vida".

- ...verdade!

- A gente tem que fazer a vida andar, doutor...

- ...

No barbeiro...


Há muitos e muitos anos, numa barbearia bem distante daqui...

- Vou mostrar para o senhor as fotos com opções de cortes para o seu tipo de cabelo.

- Obrigado, não precisa, pois...

E abre o álbum Kodak "Seus Melhores Momentos" anos 90, amarelado pelo tempo, guardado naquela gavetinha do meio com chave, debaixo de pentes, fios de cabelo variados, papeizinhos e notas de dois reais religiosamente amassadas.

- Aqui, olha, tem este corte assim, este aqui também, e outro...

Realmente o barbeiro estava interessado em mostrar seu trabalho. Concentradíssimo.

- Veja - interrompo - meu cabelo não tem muito segredo. É máquina "cinco" dos lados e tesoura em cima. E nem precisa lavar.

Ele então desvia o olhar por alguns instantes, agora para o espelho, naquela conversa estranha em que você olha pra frente e escuta pelos lados.

- Muito novo e muito cabelo grisalho, mas o loiro esconde.

- Perdi as contas de quantos já me falaram isso. Agora eu já sei! Vai me sugerir alguma "tintura" natural, luzes invertidas ou sei lá o quê mais.

- Não, não. Na verdade...

E continua a esquadrinhar minha cabeça, pensativo, como que elaborando uma estratégia de guerra ou uma abordagem cirúrgica.

- Hum?

- ...Na verdade o senhor tem razão, seu cabelo não dá pra fazer coisa muito diferente. Cortar curto! E é por causa da sua... da sua...

- Cabeça.

- Isso! Exato. A sua cabeça! A sua cabeça é...

- Grande...!

- Não exatamente...

- Quadrada? Desproporcional?

- Não, senhor... Imagine! Eu diria que ela é... AVANTAJADA.

No Dia da "Criança que Envelheceu Rápido Demais"

- UTI...? Tio, minha mãe vai ficar bem? Ela vai morrer?

Um acidente de carro bobo, sem culpas ou culpados. Uma jovem mãe que dormia no banco do carona com cinto de segurança. Sem colisão, apenas uma desaceleração brusca seguida de muita dor na barriga. Era madrugada de sexta para sábado - início da "Semana da Criança".

- O tio promete que não vai deixar a mamãe morrer.

- Dr. Marcos, ele perguntou assim pro senhor porque meu marido, pai dele, faleceu aqui, neste hospital, nesta UTI, há um ano. Ele teve um derrame e morreu de repente. Para o meu filho, UTI é igual a morte.

Eu fiz uma promessa que no fundo não poderia e nem deveria fazer. Poderia não cumprir.

- Mas a minha mãe vai pra UTI mesmo?

Era um menino de seus cinco ou seis anos. Cara de inteligente. Óculos fundos, roupa de adulto, cabelos escuros lisos e muito bem alinhados. Prestava atenção em cada palavra minha, olhos vívidos procurando alguma coisa, alguma deixa.

- O tio precisa que ela vá pra UTI, pra cuidarem melhor dela. O acidente machucou a barriga da mamãe - mostrei-lhe os hematomas no abdome. Está vendo? O tio precisa fazer um curativo lá dentro, dentro da barriga, sabe? Lá está machucado, mas não aparece. Se o tio não fizer isso, aí a mamãe pode sofrer muito, muito mais. O que aconteceu com o teu papai não é o que está acontecendo com a tua mamãe. É diferente. O tio não vai deixar a mamãe morrer.

O menino não chorou. E eu me rasgando feito um bicho por dentro. Segunda vez, mesma promessa que não poderia cumprir.

Longa cirurgia, três horas ou mais de um tempo que nunca passou tão rápido na minha vida. "Meu Deus, não posso deixá-lo órfão, não vou deixar essa mulher morrer", pensava, antes de passar o bisturi e abrir um corte na barriga inteira. Era uma mulher alta, esguia, provavelmente muito vaidosa.

Era o que tinha de ser feito.

Esqueci do menino órfão de pai, da jovem viúva, do jovem pai falecido de uma morte estúpida repentina.

Alguns centímetros de intestino retirados, muito líquido intestinal por toda a barriga. Litros e litros de soro, lavando tudo aquilo, toda aquelas tripas sujas e contaminadas de fezes.

Fiz o que tinha de ser feito.

Acabado o procedimento, chamei a família. Esperava encontrá-lo e lhe dizer "Mamãe vai ficar bem". Mas ele não estava lá, apenas sua avó e sua tia, irmã da paciente.

- Dr. Marcos, ele não veio. Está em casa chorando. Disse que não vai dormir - contou-me a avó.

Conversei longamente. A cirurgia tinha sido satisfatória, a sepse naquele momento controlada, mas ainda muito grave. A família me agradeceu.

- Levem o menino amanhã na UTI. Eu autorizo. Se não autorizarem, façam o diabo, grave a mãe num celular, tablet, qualquer coisa para ele ver que ela está bem.

E se passaram quatro dias na UTI. Eu não o encontrava. A paciente só fazia melhorar.

- Doutor, ele vem aqui me ver, fica feliz que estou falando, muito assustado ainda. Minha mãe diz que ele não dorme um segundo só. Todas as noites praticamente em claro.

- Ele vai dormir, mas apenas quanto tu estiveres em casa.

Sexta-feira, cinco dias de UTI, dois no quarto. Antevéspera do "Dia das Crianças", um corte de 40 cm, sem mais drenos ou sondas.

Alta hospitalar.

Eu não havia visto mais o menino, senão naquela noite.

Só sei que hoje, domingo, mamãe está bem, e está com ele no Dia das Crianças, no dia de uma criança que envelheceu rápido demais.

Dia do Médico

Eu nunca desistiria da Medicina e creio que hoje talvez nem mesmo existisse saudavelmente sem ela.

Os melhores valores da melhor Medicina se confundem com os que aprendi ao longo da minha vida.

Orgulho de ser médico e fazer diferença para o bem na vida das pessoas.

Sobre café requentado e imortalidade...


Hoje fui almoçar numa padaria perto de casa. São Paulo pode ter inúmeros defeitos, mas sempre haverá uma padaria na esquina que te sirva desde um pãozinho fresco até um almoço decente.

Terminada a refeição, a clássica garrafa plástica de café me espera ansiosa, olhando, impávida, dum cantinho disputado entre o balcão de doces e o de revistas. Claro, com "aquele" café requentado que eu não consegui tomar direito, porque apostando em café novo, sempre me dou mal.

Não tenho muitas vaidades (isso talvez seja um defeito), porém um de meus caprichos é não conseguir tomar café requentado. Não adianta maquiar no microondas, com leite quente ou água: sempre percebo aquele gostinho de palha de milho misturado com cinzeiro e chulé-de-dois-dias. É odioso.

Voltando para o trabalho, considerei minha falta de vaidade, ou de orgulho, por assim dizer, ou pelo menos de nunca ter pensado a respeito disso. Se há alguma coisa que nos move na vida é o nosso orgulho, dito como uma recompensa interna que se traduz em vaidade.

E o que me move? Pergunta sem resposta fácil, desanimei de início. Pensei na Medicina. Pensei na Cirurgia. Mas não pode ser só isso, afinal de contas há inúmeros médicos, inúmeros cirurgiões e - convenhamos - ninguém é insubstituível.

Aí eu lembrei a semana passada.

Estávamos num jantar animado, regado à pizza e muitas histórias, com vários ex-residentes que vi crescer, desde o início de sua formação em Cirurgia até o que são hoje: uns Cirurgiões Vasculares, outros Urologistas, Endoscopistas e Cirurgiões Plásticos...

Aos poucos, cada um deles foi contando alguma história particular, na qual eu estava presente (e não lembrava) e que havia, de certa forma, sido importante para eles naquele contexto. Era como se eu fizesse parte indissociável de sua bagagem.

Era isso.

Considero que sou apenas uma centelha pálida de energia, dentro de um universo que não cabe na minha cabeça. Não vim aqui com nenhum propósito nobre, nem uma missão fatídica. Sou um quase-nada. Não sei de onde vim, muito menos para onde vou. Aliás, eu nem me preocupo muito com isso.

Porém, saber que a minha centelha contamina outras, que por sua vez se expandem numa cadeia infinita de ganho de potência: esta é a minha vaidade, o que move este quase-nada.

E, de certa forma, também é minha humilde receita de imortalidade.

Sobre empatia, caráter e maturidade...

Aniversário é dia de fazer balanço.

Uma coisa a vida me presenteou nestes trinta e sete anos: uma lente para conseguir enxergar com clareza as pequenas e grandes coisas que acontecem ao meu redor.

Isso inclui perceber a própria língua queimada.

Faz uns cinco dias que meu aluno, residente, médico e futuro cirurgião Fernando Henrique Novaes, menino de vinte e poucos anos, está internado na UTI em estado ainda muito grave.

Lembro que há um ano e meio, quando ele iniciava a sua jornada de formação em cirurgia geral aqui no Hospital do Servidor, tive dele uma impressão ruim, guardando esta opinião secretamente, já que não o conhecia direito.

Fernando era excessivamente espontâneo.

Fernando falava muito, muito mesmo, e mais alto do que eu considerava "adequado".

Fernando era brincalhão, bonachão e irrequieto.

"Fernando serviria para ser cirurgião?" Tinha minhas dúvidas. Mas as mantinha comigo, em segredo.

Minha visita com os residentes à beira do leito, nos pacientes internados pelo Pronto Socorro, era bem conhecida, e de uma certa forma, temida. Afinal, seria a primeira vez em que os médicos recém saídos da faculdade tomavam ciência do que é cuidar de vários pacientes em pós-operatório, na maior parte das vezes graves e com câncer.

E havia chegado o dia do Fernando.

Ele deu o azar de ter sido precedido pela excelente e queridíssima Amalia Spector. Ela, não obstante todos os meus rigores, senões e poréns, havia sido a melhor até então.

Começa a visita. Eram vários pacientes, uns quatorze, se não me falha a memória.

Fernando conhecia todos. De cor. E quando eu falo "de cor", quero dizer etimologicamente também: "de coração".

Na passagem pelos leitos, a espontaneidade tornara-se empatia e compreensão.

O "falar alto", transmutado em clareza e lógica de pensamento.

A inquietude, nada mais que atitude firme e preocupada constantemente com o bem estar daqueles cuja vida depende das nossas decisões.

Vistos e examinados todos os pacientes, eu percebera que não havia feito nenhum reparo à sua visita médica. Então eu o parabenizei e lhe contei da minha primeira impressão.

Ele riu demais. Com todos aqueles 32 dentes aparecendo.

E eu fiquei muito feliz por dentro, por ter me enganado tão completamente.

Fernando, tu precisas voltar logo para me ensinar um monte de coisas, como, por exemplo, queimar minha língua.

Vale mais do que ação na bolsa... (Crônica)


- Vó, o que é Petrobras ON?
- Hum... Não sei. Essas coisas tens que perguntar pro teu avô.

 Vó Iris, eu, Vô Alberto em 1989
Era o que eu via num telejornal na longínqua década de 80, no pequeno televisor preto-e-branco do quarto dos meus avós. Deitado na cama, ao lado de minha avó, que não parecia nem um pouco interessada no noticiário, ela desvia o olhar do crochê.

- Se o teu avô não souber o que é, eu é que não vou saber.

E ele também não sabia.

- Marcos, preciso ver e te digo. Outro dia - franziu meu avô aquela testa pensativa de sempre - outro dia eu te respondo.

O "outro dia" foi o dia seguinte, e eu certamente havia esquecido a minha pergunta, do alto de meus oito ou nove anos de idade.

- A Petrobras vende gasolina, e ela é muito grande, muita gente é dona dela. Cada um que tem um pedacinho dela - chamam de "ações", e esses pedacinhos...

Eu, sem entender nada e prestando atenção em tudo, naqueles pedacinhos que valiam dinheiro e que vendiam numa tal de Bolsa, que eu achava que era uma bolsa gigante cheia de notas de milhares de cruzeiros.

Bom mesmo era ver todas as inflexões da sua já velha testa, os gestos, os desenhos firmes de suas mãos enrugadas num caderno puído. Via meu avô discorrer sobre mais um assunto que certamente não dominava, mas procurava saber. Para mim isso era um deleite, de uma grandeza e singularidade sem par. E minhas perguntas eram infindáveis...

"Seu" Alberto, "Seu" Day - como era conhecido na vizinhança - teve a mínima educação para saber ler e escrever. Foi um operário, no sentido estrito da palavra. Trabalhou por toda a vida na mesma tecelagem, e por lá se aposentou. Autodidata, faz-tudo, pedreiro, marceneiro, encanador e eletricista meio a contragosto.

- Detesto levar choque. É a coisa que mais detesto. Posso cortar um dedo ou ter dor nas costas. Mas choque me chateia.

Serviu ao Exército, chegou à cabo, o que lhe era motivo de orgulho, e fonte de histórias saborosas - e talvez um pouco fantasiosas - sobre como um velho jipe das Forças Armadas chegava em casa para buscá-lo à noite.

- Eles me levavam à uma sala do quartel e me mandavam traduzir mensagens interceptadas da Alemanha, pelo telégrafo. Eu era o único que sabia ler em alemão. O Presidente Vargas proibiu o alemão nas escolas, mas eu já sabia ler...

Aí meu avô apontava para uma foto bem pequenina do Hitler que ele guardava "quase" escondido no canto da cristaleira.

- De certa forma ajudei a derrotar esse homem - falava, em tom discreto mas triunfante.

Eu só descobri quem era o cara daquela foto alguns anos depois.

Meu avô não era do tipo bonachão, expansivo ou amistoso. Pelo contrário, era de uma severidade e um rigor sem precedentes, de um formalismo simples e genuíno. Um abraço, um beijo, eram quase tortura para ele. Suas demonstrações de carinho eram bem diferentes.

- Tu estás aqui? Cuidado, podes te machucar. Pega aqui... uns pedaços de madeira e apenas com isto podes brincar. O resto tens que me pedir.

Eu sempre invadia sua oficina, nos fundos daquela casa de madeira, onde ele produzia de tudo. De cabos de enxada, de facas ou facões, bancos e bancadas, mesas, até armários.

- Vô, por que este armário da oficina que o senhor fez é tão pesado?
- Porque ele é bem feito.
- Mas é feio. O que a gente compra é mais bonito - respondi naquela sinceridade que só a infância nos permite.
- Vem cá, deixa eu te mostrar o armário do nosso quarto, que comprei na loja. Olha aqui atrás.

E me mostrava aquele forro feito de madeira mais fina que uma folha de papel. Mole.

- Empurra pra dentro. Olha como é fraca! Olha como se despedaça.
- Vô, mas ele é bonito na frente.
- Pode ser bonito, mas é mal feito. Ou uma coisa é bem feita, inteira, ou ela é mal feita.

Minha irmã sempre pedia para ele fazer um cachorro. Claro, de madeira. Com uma foto de revista ele transferia o contorno do bicho para o papel, depois diminuía ou aumentava a escala, passava então para a madeira, e algumas semanas depois - voilá - eis que surgia o cachorro lixado, lisinho, pronto para brincar.

Mas ele tinha uma obsessão. Fazia Pinóquios. Nunca entendi por que ele fazia tantos. Eu, lendo o livro anos depois, vi que Pinóquio, menino de pau que queria ser perfeito, tornado à vida por um encanto, tinha um sonho de perfeição no desejo em ser uma criança de verdade. No fundo acho que meu avô personificava isto, talvez não a perfeição em si, mas a busca pelo que achava correto, justo e honesto.

Em suas casas tudo funcionava. As portas não rangiam, as facas eram sempre afiadas, as janelas e as gavetas nunca empenavam. Ele se preocupava com isso, com tudo aquilo que tivesse um "defeito" e que pudesse ser "reparado". Do motor de uma enceradeira velha, consertou e diminuiu sua rotação e o montou sobre uma base, para que no Natal o pinheiro rodasse em torno de si mesmo, num movimento delicado.

Certa vez minha avó encafifou que queria morar numa casa que fosse a mesma de sua infância. Como meus avós já haviam vendido a casa de Blumenau, e de tanto ela insistir, meu avô montou uma maquete em isopor daquela morada de 40 anos atrás, usando apenas as reminiscências dela. Em dois anos o isopor já tinha se transformado em alvenaria de verdade, nas mãos dele e de mais um ou dois pedreiros.

Ele adorava uma instituição, seja o Exército da carreira frustrada, ou a Igreja, de uma "carreira" que o levou a ser diácono e celebrar o casamento da própria filha, minha querida tia.

- Teu avô só pensa na igreja e não pensa em mim, Marcos - reclamava minha avó, Da. Iris, amuada.

Mesmo aposentado, meu avô sentia a necessidade de pertencimento, de ser parte de uma coisa ou projeto "dentro" de uma coisa maior. Quando lhe dei meu gorro de selva, com o qual eu havia servido ao Exército na Amazônia, junto com a estrela de segundo tenente, ele deixou escapar uma lágrima.

- Marcos, que orgulho. Eu queria ter sido oficial do Exército, como tu.

Justo eu, vô querido, eu que tanto desdenhava da carreira militar...

Depois que entrei na faculdade de Medicina, virei referência para ele. Assim, podia discutir comigo todas as doenças que ele curiosamente lia num velho livro alemão... Aliás, sua saúde era de ferro. Magro, constantemente se pesava e se o ponteiro marcasse mais do que os 55 Kg habituais, fazia um pequeno regime.

- Marcos, o que é o mal de Chagas?

Quanta responsabilidade! Responder a uma pergunta de alguém que sempre respondeu as minhas... E poderia desfiar aqui outras inúmeras histórias dele, mais ou menos saborosas, que sempre farão parte da minha memória.

Há anos foi-se embora o Seu Alberto, numa das hemorragias intestinais que ele teimava em esconder, no ano em que comecei a me especializar em cirurgia.

Em pouco tempo a terapia me ajudou a reconduzir os personagens da minha vida. Certamente o Vô Alberto é dos mais importantes, pelos exemplos e por preencher muitos dos espaços tão desoladamente vazios da minha infância e adolescência.

A busca incessante pela coerência entre o falar e o fazer foi o maior tesouro que herdei de ti, vô.

Sem esquecer também do medo da eletricidade.
Da habilidade manual que me permite operar.
Do amor a tudo o que é de madeira.
Da letra (que era bonita igual à tua, mas agora está feia à beça).
Da magreza que não tenho dificuldade em manter.
De um certa dificuldade de me expressar sentimentalmente por meio de palavras, senão apenas com gestos.

E, finalmente, de poder saber que o certo é "certo", e errado é "errado". Mesmo.

O amor cura até facada...

Do alto de seus 14 anos de idade, a nova namorada do recém-divorciado estava feliz da vida, pois a mãe dela havia aprovado o relacionamento. Até que dia desses foi surpreendida pela ex dele, que a esfaqueou na coxa. E lá se foram quase 1,5 litros de sangue no chão da cozinha. Um dia depois, a menina, convalescendo no hospital, após ter sido atendida e já sem risco de morte, recebe outra surpresa da ex dele. Uma visita, um pedido de desculpas, um aceite, muito choro e abraço apertado. 

Tudo civilizado e cortês.

O Natal de muita gente

"Final de ano": tempo de nascimento do Cristo, de confraternização, de amor e reconciliação...

Tempo de as famílias "esquecerem" de dar a medicação crônica para aquele ente querido, hoje acamado, e que dá um baita trabalho.

Tempo de inventar sintomas, de dizer que ele teve febre, e que sim: ele está "pior" e "estranho" e "muito mal".

Tempo de levá-lo para as emergências dos hospitais, no finalzinho da tarde ou mesmo de madrugada, de SAMU, carro ou ambulância particular, tentando convencer ao médico que o interne sem demora.

Tempo de tentar assim arranjar tempo para poder confraternizar em "paz", em "família", geralmente na praia; claro que sem o incômodo ente querido...

Não é só o CD da Simone que é uma constante no final de ano.

Virada de ano: 2013 para 2014.

Analisando friamente, minhas "resoluções de ano novo" para 2013 falharam, no todo ou em parte. Senão vejamos:

Mestrado? Está a procura de um sentido na minha vida.

Melhorar o inglês? The book is STILL on the table.

Academia? Capengando, meia-bomba.

Trabalhar menos? Às vezes. Trabalho ainda muito.

Comer melhor? Um pouco.

Mais provas de título de especialista? Ainda fico me remoendo a pagar mais anuidades para "sociedades" médicas.

No entanto, neste ano a vida me proporcionou algumas coisas que não estavam exatamente na minha planilha mental:

Casei com a única mulher no mundo que realmente amo e que me suporta integralmente.

Consegui me reencontrar, respeitar e olhar minha história sem mágoas ou julgamentos. Meus olhos pararam de olhar para trás, de uma vez por todas.

Reuni no meu casamento minha família, que há muito não via e nem decentemente eu valorizava. E isso desencadeou um círculo virtuoso, de reaproximação e sensação de pertencimento.

Finalmente, depois de 12 anos, consegui ter uma conversa decente com meu pai.

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Que em 2014 venha mais de 2013.

Sobre vida e morte...

Ter um amigo internado na UTI, entre a vida e a morte, me fez pensar em muitas coisas.

Eu penso muito sobre as coisas.

Ele era aluno do sexto ano de Medicina, à época em que eu era preceptor da Gastrocirurgia do Hospital Santa Marcelina. Diferença de no máximo cinco ou seis anos. Esforçado, dedicado, destacava-se - e muito - do mar de incompetência que o cercava. Daí para a amizade foi um pulo.

Os caminhos se distanciaram, ele se bandeou para a Cardiologia e eu segui tocando a vida. Perdemos contato. Anos mais tarde, fui encontrá-lo em outro hospital, ele médico da UTI, e eu lhe "entregando" pacientes graves por mim operados.

- Marcos, precisamos marcar de jantar num restaurante japonês.

Claro, eu respondia que sim, embora detestasse comida japonesa.

- Minha religião não permite comer animais crus - eu lhe retrucava, rindo - Fico com os assados e cozidos!

Naquela UTI, certamente ele cuidou com afinco de muitos de meus pacientes muito, muito, muito graves. E vários deles sobreviveram, sem ao certo saber o nome do médico que lhes tratava.

Fomos padrinhos de casamento de um grande amigo nosso. Só soubemos no dia...

O cuidado que ele tinha com os pacientes, como é comum no meio médico, não aplicava à própria saúde. A juventude não é o elixir da vida.

E a conta dessa negligência um dia chegou.

Até aqui ele está quase há dez dias na UTI. Choque, sedação, respirando - como dizem os leigos - "com ajuda de aparelhos" - em hemodiálise, alimentando-se por sonda.

Eu queria que isso não tivesse acontecido.

Eu queria que ele tivesse se cuidado.

Eu queria que a doença dele fosse passível de cirurgia, assim eu saberia o que fazer concretamente para ajudá-lo um pouco.

Eu queria ser um pouco "Deus", ou quem quer que tenha poder, para não deixá-lo ir embora.

Eu quero meu amigo de volta, pra pagar minha dívida com ele no restaurante japonês e lembrar disso tudo como a um grande pesadelo.

Médico bom é médico "bonzinho"?

"Aquele médico é bonzinho...!"

   


Quando ouço estas palavras de algum paciente e/ou funcionário de hospital, o que me vem à cabeça?

A) Ele dá atestado.
B) Ele aceita encaixe "urgente" que nunca o é.
C) Ele faz consulta de corredor/fonada/whatsappada/facebookiada.
D) Ele repete receita de psicotrópicos de amigo ou parente não presente à consulta.
E) Ele aceita calote sem reclamar.
F) Ele responde "tudo bem" frente a uma palavra de "desculpa" (que veio após impropérios, palavrões dos mais cabeludos, gritarias e ameaças).
G) Ele pede todos aqueles exames caros e inúteis que o paciente viu no Fantástico.
H) Uma ou mais das anteriores. Senão todas.

O maior arrependimento da vida



- Tenho uma mágoa - diz meu vô Alberto, sentado na espreguiçadeira.

Cabisbaixo, balança a cabeça desolado. Ensaia uma lágrima. Olha para a janela, para o nada da rua.

- Que foi, vô?

- Tinha um cachorro. Ele era lindo.

E balança a cabeça de novo, negativamente.

- Era grande. Dourado. Faz mais de cinquenta anos... Eu adorava, corria pelo quintal.

- E...?

Sabia que viria uma bomba. Afinal de contas meu avô NUNCA jogava conversa fora. Falava pouco, mesmo quando arguido, e jamais sobre qualquer assunto que não tivesse uma função, um pretexto.

E ele, abrindo o coração assim, seria um momento único. Percebia que ele tinha vergonha do que iria "revelar", afinal não dirigia o olhar para mim, apenas para aquela janela da casa de praia, que naquele momento dava para um quintal de nada com coisa nenhuma.

- Era um cachorro lindo, lindo...

Meu avô nunca tratou bem nenhum animal doméstico. "Cachorro só fora de casa", era um de seus lemas favoritos.

- Mas, sabe? Ele tinha um defeito. Ele entrava no galinheiro para comer ovo! Bagunçava tudo, assustava as galinhas. Acredita que ele comia ovo, cru?

Meu avô não mentiria.

- Fiz de tudo. Aumentei a cerca, chamava o danado, brigava, "tocava" ele de lá. Mas ele dava jeito de entrar!

Pausa. Suspiro.

- Um dia - meu avô embargou a voz - um dia ele havia feito bagunça no galinheiro de novo. Eu fiquei bravo, peguei minha espingarda, apontei e chamei. Ele veio. E eu atirei, de raiva, de tudo, para assustar.

Suspiro longo. E meu coraçãozinho batendo a mil.

- Um tiro, eu acertei na cabeça e ele morreu. Fiz sem pensar. Tive e não tive culpa. Até hoje eu me culpo.

- Vô?

- Sonho com ele, Marcos. Desde aquela época, há cinquenta anos atrás, sonho com ele quase todo dia.

Parar é deixar viver.

Precisamos aprender a parar.

Setenta e poucos anos de idade, duas cirurgias e um mês dentro de uma UTI.

E uma terceira complicação. Mais grave ainda. Mais grave que tudo.

Reoperar, reabrir, mexer, colocar a mão e trazer de volta? Dar vazão ao nosso ímpeto tão terreno, tão humano, de vaidade, egocentrismo e arrogância?

Não. Não mais. Não quero vê-la falecer debaixo de um foco de luz cega, numa sala fria com gente desconhecida.

Não. Chega. Vá em paz, cercada de seus entes queridos, de uma família tão especial que tive o privilégio de conhecer.

Parar. Deixar. Entender. Aceitar. Compreender...

Precisamos todos aprender.

A pizza do plantão

O hospital continua lotado. O pronto-socorro, caótico. Pacientes esperando por atendimento, enquanto médicos esperam quem sabe um dia transformar seu atendimento em solução. Nada, portanto, incomum em mais um plantão de cirurgia.

Pedimos duas pizzas para matar a fome da equipe, afinal são 1h30 da manhã, e refeitório de hospital público dispensa quaisquer comentários. Chove torrencialmente.

O entregador da pizza chega à entrada do hospital.

- O senhor tem sorte, doutor - ele me diz - muita sorte.

"Sorte?", penso eu, "sorte" não combina com atuar em péssimas condições de trabalho, mal remunerado, exposto e eventualmente ameaçado com os mais diversos impropérios e agressões vindos de gente desesperada por um mínimo de amparo... Posso chamar isso de "sorte"?

- E por quê me dizes isto? - retruco ao motoboy.

Do alto de sua roupa negra, emborrachada e completamente encharcada, ele se abaixa e retira a entrega.

- Digo que vocês tem sorte. De trabalhar num lugar coberto. Imagina trabalhar no molhado, como eu? É dose. Duas pizzas e dois refrigerantes.

- Confere.

- Na chuva, nem a moto nem carro tem freio - ele continua. Imagina o seu corpo quente recebendo pingo gelado; molhado cem por cento do tempo. Cartão?

Lembrei de minha época no Exército, das chuvas amazônicas, da farda e de tudo o mais.

- O senhor tem sorte. Vocês tem sorte. Sorte de trabalhar num lugar abrigado e quente. Crédito ou débito?

Muito obrigado pela pizza. E pela lição.

Crônica Requentada: O supermercado mulambo (2011)

Pegando o fio mais recente de meu grande amigo Adrián Varela:

Todo mundo já foi num supermercado assim. Ou irá. Resistir é inútil. Neste supermercado, você...

1) ...estaciona longe, já que não é deficiente físico, nem idoso, nem grávido, nem portador de nenhuma necessidade especial, a não ser a necessidade única de se aventurar em fazer compras;

2) ...vai de uma ponta a outra do estabelecimento (uns 2000 metros) tentando achar o que quer, escutando a musiquinha de fundo e sendo informado do frango congelado (quase vencido) na promoção imperdível;

3) ...descobre que esqueceu uma coisa e volta aqueles 2000 metros, passando por setores essenciais à sobrevivência como cadeiras de praia, tênis de plástico e pneus;

4) ...pega fila enorme no caixa, já que não é idoso, gestante, ou tem criança de colo, nem comprou menos de dez itens (e descobre que o "caixa rápido" é a maior armadilha do planeta);

5) ...nota que, enquanto a fila não anda, os demais clientes abrem as embalagens e começam a comer seus conteúdos, sejam eles batata frita, chocolate ou biscoito; obviamente lambendo os dedos após se refestelarem com as respectivas refeições;

6) ...observa atentamente a atendente do caixa desmontar (a pauladas) a leitora óptica que não funciona, sem ajuda de nenhum outro funcionário, até que a máquina volte a funcionar (e depois quebrar novamente na sua vez, claro). Enquanto a máquina é destroçada, você escuta pacientemente que a moça está com morrendo de dor de cabeça porque pegou sol no ônibus, durante a vinda para o trabalho; e que está muito triste, pois terminou com o "ficante" um dia antes do Dia dos Namorados e que o tal "ficante" passou por ela hoje (durante o expediente) e, por puro despeito, nem olha na cara dele;

7) ...se surpreende com a conta, constantando que seu objetivo, o de economizar algum suado trocado, comprando num supermercado grande, não foi atingido a contento;

8) ...não tem permissão de pegar mais de uma caixa de papelão para guardar suas compras, pois a ordem é "uma caixa por CRIENTE"; e sente-se um ser horrendo e anti-ecológico pegando mais uma sacolinha plástica que não segura nem 500 gramas.

9) ...pega fila novamente para passar no único guichê (em três andares) e "validar" o ticket de estacionamento;

10) ...descobre que a cancela da saída do estacionamento está quebrada e não tem nenhuma indicação de onde mais sair.

11) ...lembra que passou a tarde inteira sem fazer xixi, o aperto até em casa será grande, porque dar meia volta, nem pensar.

Jura que "nunca mais" vai voltar lá, nem por promessa ou sob a mira de revólver. Mas isso só até o próximo mês...

sábado, 5 de julho de 2014

Pergunta de um aluno: por quê ser Médico? (Publicado no Facebook em 2013)


Foto do ano de 2003, em Tabatinga - AM. Eu e Fabio Leonetti, recém-formados, operando mais um paciente, mesmo sem formação de Cirurgia, no Hospital de Guarnição do Exército. Fazíamos o nosso melhor, mas certamente não deveria ser o melhor para aquelas pessoas tão carentes e desassistidas de tudo.

Quando me sinto triste com a profissão, como tem acontecido ultimamente, recorro às minhas mais primárias convicções, àquelas que a gente busca lá no fundo da alma, ao "bicho interno" que nos move.

Por quê Medicina? Por quê ser Médico? Por quê Cirurgia?

Não importam obstáculos, governos, Dilmas e Padilhas, golpes abaixo da linha de cintura, rasteiras e apunhaladas pelas costas.

Importa o que eu faço, da maneira que acho correto, dentro das minhas habilidades e limitações. Fora isto... Bem, não tenho nenhum controle, embora tenha meus pontos-de-vista.

Medicina é uma só. Paciente é um só. Não há melhor Medicina, nem pior paciente. Não há classificação ou estratificação quando se fala em sofrimento humano.

Destes princípios nunca abrirei mão.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Crônica: Uma pessoa normal

Era mais um paciente de final de dia. E os "pacientes-de-final-de-dia" reservam surpresas. Sempre.
Veio sozinho. Aliás, como a maioria das pessoas vem atualmente. Jovem, de seus trinta e poucos anos, não me deixou tempo para notar.
- Sou gay, doutor. E tenho parceiro fixo há muitos anos.
Tinha uma doença venérea, caso de cirurgia, nada muito grave ou urgente.
- Eu li no Google que minha doença é sexualmente transmissível, mas meu parceiro fez os exames e não tem nada. Nunca tive outros parceiros. Não sei de onde peguei. Não entendo...
E começou a fazer conjeturas, esperando que eu aquiescesse.
- E sabes que precisas ser operado, não?
- Sim. E preciso de um favor, doutor. Que não diga nada a minha família. Nada!
Infelizmente eu estou acostumado. Acostumado com famílias que não aceitam seus filhos como verdadeiramente o são.
- Fique tranquilo - respondi. A doença é só tua, e não diz respeito a mais ninguém.
E ele começa a chorar. E eu comecei a entender o porquê.
- Desculpe... O senhor tem um tempinho pra escutar?
Era o mais novo de cinco filhos, havia mais quatro meninas antes dele. Família do interior brasileiro, conservadora, cheia daqueles códigos de conduta que remetem a um Brasil-Colônia teimoso em não se desgarrar do século XXI.
Quando adolescente, descobriu-se "estranho" e "trejeitado", segundo suas próprias palavras.
E começaram as surras. Apanhava do pai, e muito: chicote, corrente, chinelo, cinto. A mãe o defendia poucas vezes e fracamente. As irmãs, alienadas, fingiam não ver.
Fugiu para a metrópole, começou a dar aulas de dança numa escola, onde conhecera o parceiro de até então. E isto foi há uns quinze anos.
- Tanto tempo passou, a sua família não aceita ainda sua opção? Não se "acostumaram"?
- Não, doutor. E se eu tivesse opção, eu não seria gay.
Passadas algumas semanas eu o operei, mas não sem antes receber na sala de cirurgia a expressa recomendação:
- O senhor prometeu não comentar nada.
- Claro. Prometido.
E nem precisava. Ao terminar o procedimento, ninguém estava lá para receber notícia nenhuma. Nem no dia seguinte, da alta.
- Não veio ninguém, doutor, nem meu companheiro - falou, cabisbaixo.
E no retorno ao consultório, alguns dias depois, sozinho como sempre, me pede um abraço, prontamente aceito.
E chora novamente.
- Obrigado, doutor. Obrigado por me tratar como uma pessoa normal.