quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

O ano das "paternidades"

IEste 2015 foi o ano do acerto das “paternidades”.

Em primeiro lugar, da paternidade reconhecida. 

“A guerra, para muitos de nós, é a cura”, disse o personagem Capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite. 

Operar e ensinar cirurgia eram a minha cura (e, confesso, continua assim...). O menino-adolescente que cresceu encontrando figuras paternas erráticas ou hipócritas, muito machucado tanto física como emocionalmente, encontrou na sala de cirurgia o palco ideal: de um lado, o corpo do paciente, inerte, “agredido” formalmente pela fria lâmina do bisturi; de outro, o médico-residente, o “filho” adotado por mim, seu “pai”, seu médico-preceptor. Ensinar cura pela agressão; tentar ser o melhor pai (que nunca tive) para um filho (que não é meu), e que precisa muito, muito de mim. Parece perfeito.

E esta paternidade foi reconhecida: meus alunos, da XIII turma de Medicina da UNICID, me homenagearam como mestre, ao lado de cabeças tão mais experientes e grisalhas... Meu muito obrigado aos meus filhos, que agora saíram do ninho e ganharam o mundo. Sentirei saudades.

Em segundo lugar, da paternidade conquistada. 

São quase dois meses do nascimento de nossa filhota Luísa, presente maior que minha mulher Patricia poderia me dar. E que presente! E que trabalho cuidar de alguém cuja vida depende integralmente de você, inexperiente e ainda por cima portador da sensação comum a muitos de nós médicos: a de que tudo de pior pode acontecer a qualquer momento com sua filha. Luísa nasceu de parto cesáreo, e confesso que planejávamos o parto normal, que não ocorreu, apesar da indução. 

Na hora de seu nascimento, eu só lembrava de quando eu era aluno do sexto ano, e estava estagiando na sala de parto do Hospital Universitário. Chegou uma moça, de seus trinta e poucos anos, gestante de nove meses, internando junto com seu esposo para indução do parto: mas o feto já estava morto, e nem lembro direito o porquê: ela já sabia disso, e estava num estupor, num estado de dissociação da realidade perfeitamente compreensível. Naquele momento fui seu obstetra, e administrava os mesmos comprimidos que minha esposa havia usado para a indução da minha filha. Depois de algum tempo, de um grito contido e uma contração forte, eis que emerge daquela fortaleza de mulher um bebê menino, acinzentado, inerte, que rolou pelo colchão como um boneco de madeira. Sem vida. E depois a placenta, enegrecida e fétida.

“Doutor, deixa eu pegar o meu menino”. 

Mas... Ele está... Morto... Ela sabia já...

Cortei o cordão umbilical, envolvi o corpinho perfeito e gorduchinho num lençol e o entreguei ao colo da mãe, que o balançava e ninava... “Meu filho, meu filho...”

De repente, ouvi um choro. O choro mais agudo e doloroso que jamais ouviria em toda a minha vida. 

Era o choro do pai. 
Quando Luísa nasceu, tive muito medo de ouvir este mesmo choro. Eu não ouvi, mas juro que na hora lembrei daquele pai, daquela mãe, daquele bebê provavelmente cercado de todas as expectativas e das melhores intenções do mundo. E pior, de certamente haver tantos e tantos bebês saudáveis mas não desejados e não queridos. O que será deles? 

Esta paternidade, conquistada, me conquista todos os dias. A amamentação, o banho, a troca de fralda, o choro, pequenas risadinhas, muita bochecha e amor. Repito o clichê: só quem tem um filho sabe o que é a felicidade de ter um filho.

Por último, e não menos importante, da paternidade redefinida.

O nascimento da netinha paulistana traria meu pai para dentro da minha casa: seria inevitável. E assim ocorreu.

Pela primeira vez eu o recebi em casa, dentre tantas e tantas casas em que vivi. Eu não tinha mais desculpas para não recebe-lo: ele tinha meu endereço e eu continuava morrendo de medo de não saber lidar com alguém que pouco lidei.

No fundo, além de conhecer a neta, ele veio também ver a homenagem de meus alunos: confete sempre foi o seu forte.

Eu fiquei sempre na defensiva, esperando o momento do desgaste e da tensão. Nada disso ocorreu.

Era apenas o meu pai, um senhor boquirroto de seus setenta e poucos anos, que chegou do interior de Santa Catarina após doze horas de viagem dentro de um ônibus, apenas para ver seu filho e conhecer sua neta. Apenas e especialmente isto.

Pela primeira vez consegui fazer um café para ele, e comprar seu pão na padaria, e – estranhamente - nem por um segundo desejar que ele fosse embora ou que eu mesmo desaparecesse. Não havia o lugar para o embora.

Pela primeira vez eu o vi sentado, fazendo uma refeição, na minha casa, falando sobre minhas coisas, sobre nossas coisas, assuntos prosaicos e aqueles nem tanto.

Pela primeira vez eu o recebi em algum evento sem passar vexame. Sem sentir vergonha de mim, nem dele.

Quando o deixei na rodoviária, desejei secretamente que ele ficasse mais um pouco. Sabia, também secretamente, que mais tempo não era desejável – o racional se impôs e preferi que o momento ficasse congelado no que considerei ideal. Meu pai conseguiu ser pai, e eu consegui ser seu filho.

Em 2015, meus filhos-alunos me chamaram de “pai”. (Na frase de um deles, que nunca esquecerei: “O senhor não me ensinou Medicina, ensinou a ser Médico”).

Em 2015, tornei-me pai de verdade e ganhei uma filha que nos encanta a cada dia.

Em 2015, consegui ser filho de um pai de verdade, mesmo que por um breve momento.

Em 2015, muita coisa bastante bagunçada se ajeitou, meio sem querer.

Que venha 2016.


domingo, 18 de outubro de 2015

A maior diarréia da minha vida

No Dia do Médico, eu me lembrei da maior diarreia da minha vida...

Havia acabado de me formar em 2002, e logo seria chamado para servir ao Exército, como oficial médico, na cidade amazonense de Tabatinga, fronteira com o Peru e a Colômbia.

Recém-formado, ainda na fralda, cru e inocente de tudo, fui lotado no Hospital da Guarnição. Minha função (e a de outros médicos iguais a mim, vindos de todos os cantos desse Brasilzão) era a de ser “médico”, ou seja, atender e resolver o que aparecesse na frente.

Eu já havia passado na prova da especialização em cirurgia geral, e isso na prática não me credenciava a nada, naquela região carente de tudo.

Casos mais graves? Três dias de barco até Manaus. Impraticável. Impossível.

Era preciso ser médico.

Era preciso ser pediatra, ginecologista, obstetra, cirurgião, clínico, intensivista, eventualmente anestesista e psiquiatra.

Tive sorte: junto com meu recém-amigo Fabio Leonetti e o Tenente Messias (in memorian), este o único cirurgião formado, ficamos nós três responsáveis pela “Cirurgia” de todo o Alto Rio Solimões.
Éramos, naquele hospital de 26 leitos, a referência para várias cidades ribeirinhas, à época em torno de 80 mil pessoas.

Durante aquele ano de 2003, nossa rotina - agitada e extenuante - de partos, cirurgias, traumatismos, atendendo recém-nascidos, crianças, adultos e idosos - transcorria sem grandes sobressaltos: bem ou mal, havia um cirurgião e alguns meninos-médicos curiosos e esforçados.

Mas um dia, em novembro, chegou um telegrama na Guarnição: era a transferência do Tenente Messias. O único cirurgião “de verdade” logo iria embora para Salvador, sua terra natal.

E ele foi.

Ficamos sozinhos, eu e o Fabio, a “retaguarda cirúrgica”.

O Exército, na sua infinita desorganização, não previa transferência para a cidade de nenhum outro cirurgião até o início do ano seguinte.

Eu me pegava, todas as noites, pedindo para que não aparecesse nenhum caso grave naqueles dois longos meses que ainda faltavam para a nossa transferência.

Toda a ligação telefônica era um sobressalto, seguida de um alívio até... bem, até a próxima ligação. Passamos um mês ilesos.

Até que, num plantão do hospital, o soldado me chamou.

- Tenente Marcos, rádio do pelotão de fronteira, é o Tenente Guilherme!

Guilherme era jovem médico, como eu, e atendia num destacamento do exército isolado na floresta. O acesso era feito por barco, avião da Força Aérea ou excepcionalmente de helicóptero. Não deveria ser nada de mais.

- Marcos, estou aqui com o recruta João [nome fictício], 17-18 anos de idade, acho que está com apendicite...

A transmissão do som do rádio era sofrível.

- Ele está grave?
- Mais ou menos. Vou ter que transferi-lo de helicóptero, acho que não é prudente deslocamento por barco. O próximo avião aqui só no mês que vem.
- Ok, pode mandar...
- Já mandei... Ahahaha. Tem algum cirurgião aí? 
- Não chegou ninguém ainda, só estamos eu e o Fabio.
- Xiii, boa sorte! Pode colocar no currículo que eu te mandei a primeira apendicite da vida!!

Eu ri da brincadeira séria.

Apendicite, inflamação do apêndice, é uma doença de tratamento cirúrgico de urgência. Pode se apresentar como um caso leve ou extremamente grave.

As horas não passavam. Chegado o recruta, eu o examinei e confirmei o diagnóstico. Não tínhamos nenhum exame complementar. E nem era preciso.

Chamei meu amigo e começamos a cirurgia.

Eu suava frio.

Lembro de não ter falado durante o procedimento. Não sei nem se respirei ou pisquei os olhos.

Os dois médicos recém-saídos da faculdade, operando sem treinamento específico, no meio da Amazônia. Era o que havia disponível. Era o possível.

A cirurgia terminou no finalzinho da tarde, e havia transcorrido bem.

Indo a pé para casa, eu parecia carregar minha cabeça fora do corpo. Não pensava em absolutamente nada. Tirei a farda, tomei um banho.

E comecei a suar novamente. Depois as cólicas. E a diarreia. Vários episódios, um milhão de episódios. Fiquei umas duas horas no banheiro.

“Operamos sozinhos.”
“Um menino de dezoito anos.”
“Não temos formação.”
“E... se acontecer alguma coisa com ele? Re-opero? Transfiro? A quem me reporto? A quem pedirei ajuda, opinião?”
“Fiz uma incisão muito grande!”
“Não temos UTI nem antibióticos caso ele precise.”
“Será que não estou esquecendo de alguma coisa?”
“Conferi tudo?”
“E se não foi o suficiente?"
"E se...? E se...? E se ele morrer...?"

E dá-lhe mais diarreia. Eu estava tão exausto e imundo que tomei mais um banho e fui dormir, bebendo apenas água.

Acordei no meio da madrugada, sonhando que o paciente havia tido uma hemorragia interna, e que os pontos haviam soltado, e que a artéria do apêndice arrebentou...

Liguei para o hospital. Eram duas, ou três, ou quatro da manhã.

- Pois não, tenente!
- Como está o recruta João?
- Está ótimo, sem dor, com os sinais vitais normais, etc.
- Coloque o paciente na semi-intensiva.

“Semi-Intensiva” era um eufemismo para um leito no hospital que tinha uma atenção melhor da enfermagem.

- Mas tenente, precisa mesmo...?
- Por favor, coloque... Por favor... Agora...

Liguei para o meu amigo.

- Fabio, eu sonhei que o João complicou, que abriram os pontos, que sangrou.
- Cara, não fala isso não, eu acredito muito nestas coisas... Pára com isso.
- Vou para lá agora. Não consigo dormir.
- Rato branco – era esse o meu apelido, dado pelo Ten. Messias – deixa que eu vou. E te aviso.

Fiquei acordado até o retorno da ligação.

- Ele está ótimo. Você o colocou na “semi”??

E assim o pós-operatório do paciente transcorreu sem problemas.

Duas semanas depois eu o recebi para retirada dos pontos. Realmente tinha sido uma incisão exagerada e altamente “não estética”.

Era, sim, um menino de dezoito anos, simples e semi-analfabeto, de origem indígena, como tantos outros... Ser soldado do Exército naquelas paragens correspondia a uma ascensão social impensável para a maioria da população.

- Tenente Marcos, eu não sabia que essa doença que eu tive podia matar. Minha mãe falou que teve uma amiga que morreu disso, de apendicite!

- É verdade, pode sim – aquiesci. Mas o seu caso não foi tão grave assim...

- Mas poderia ter morrido se senhor não me operasse. O senhor me permite agradecer?

No rígido código militar, um subalterno nunca, sob nenhuma hipótese, pode fazer menção de cumprimentar um oficial sem permissão deste.

Eu estendi minha mão e o abracei.

- Muito obrigado, tenente, por tudo o que o senhor fez por mim.


Mal sabe o recruta João que eu até hoje agradeço por tudo o que ELE fez, e faz, por mim. 

Todos os dias.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

"E o que ele estuda lá?"

Eram duas da manhã, plantão calmo, quando a "moça da limpeza" veio recolher o lixo do consultório do pronto socorro.

Era miúda, com um sorriso amarelado pelo tempo. Não era tão "moça" assim.

Usava aquelas botas de borracha, enormes, desengonçadas. O esfregão a acompanhava.

- Mas o lixeiro está cheio de água, doutor.

- Com a chuva que deu há pouco, alagou o consultório... E pingava até do teto...!

(Detalhe que o PS foi recém construído...)

- Ah, doutor. Como pode? Atender nesse lugar alagado...?Vocês estudam muito, que eu sei, e dá trabalho danado atender esse povo...

- A senhora acha isso mesmo?

Eu não perco oportunidade.

- Ô, se sei! Tenho um filho que estuda na USP...

- E o que ele estuda lá?

- Medicina. Vai pro terceiro ano.

Filho único, abandonado pelo pai aos dois anos de idade.

Criado pela mãe desde então,
numa favela da zona sul, faxineira da empresa terceirizada de um hospital público.

Estudou apenas em escola pública, e passou no vestibular de Medicina com dezesseis anos de idade.

- Tenho orgulho dele, estudou sozinho e não depende de ninguém... O senhor acredita?

Claro que sim.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

A semana possível

Esta semana perdi uma paciente querida, de 98 (98!) anos, totalmente lúcida e ativa, após uma grave cirurgia de urgência: teve complicação pulmonar... Seria o resultado "esperado", mas nunca "espero" isso, não fui treinado para isso. 

Ao mesmo tempo, ontem demos alta para outro paciente, de 96 (96!) anos, sem sequelas, também submetido a procedimento de urgência. 

Penso que a vida está aí e tudo nos oferece, basta estarmos atentos: trabalhar, agradecer, compreender, aceitar, seguir em frente. 

Arrisco dizer que o paciente idoso é o maior desafio da Cirurgia neste século.


sábado, 8 de agosto de 2015

Conseguir falar com meu pai é uma vitória...

Todo mundo vai homenagear o pai no domingo; eu me contento em conseguir falar com o meu.

Era maio de 2013, faltavam seis meses para meu casamento. E desde minha formatura, em 2002, eu não falava com meu pai.

Onze anos.

Na verdade, desde que me entendo por gente, nunca falei direito com ele. Meus pais se separaram cedo, eu tinha cinco ou seis anos. Cresci vendo meu pai como a um personagem. Não conseguia compreendê-lo. 

Não o aceitava sob nenhuma hipótese, e chegava a negar até a minha própria aparência (tão parecida com a dele...): buscava sobretudo, e incessantemente, as diferenças, os contrapontos, as divergências.

Nunca concordava com o seu jeito, com suas decisões, sua maneira de viver e ver o mundo.

Quem conhece meu pai, sabe do que estou falando.

Eu me sentia órfão de pai vivo. Como ele não era o pai que eu queria e idealizava (e achava que “merecia”), passei boa parte da minha existência buscando um pai, e me comportando como um filho. Sempre.

Mas os “pais” que fui encontrando e adotando temporariamente ao longo da minha vida espertamente percebiam essa lacuna, essa necessidade tão cara, tão preciosa para a autoestima: a busca de reconhecimento e aprovação. 

Resultado: passei boa parte da minha vida a serviço de outras pessoas, de interesses que não os meus, de sonhos, projetos, empregos, trabalhos, enfim: fazia de tudo para que pudesse um dia ser finalmente adotado por alguém.

Mas essa "adoção" não vinha. 

Os pretensos pais só me faziam sofrer mais. Sofria tanto até o ponto de os abandonar, para então continuar a minha busca em outro lugar, numa outra figura, um outro “pai”. 

Eu mudava de emprego, mudava de cidade, mudava de chefe. Só não mudava meu objetivo, inconsciente, incessante.

Enquanto isso, meu pai de verdade padecia de um câncer de intestino e foi operado às pressas. Eu já havia me especializado, já era cirurgião em São Paulo: longe dele, portanto. 

Lembro que foi uma das poucas vezes em que nos falamos neste período. Não fui vê-lo, não porque não quisesse, mas simplesmente porque eu não conseguiria.

Soube, por telefone, do resultado da sua cirurgia. O meu colega cirurgião, que o havia operado, estava exultante: “Seu pai está ótimo!”. 

Fiquei petrificado, mudo. A cirurgia tinha sido um sucesso. No fundo, eu desejava o pior, queria que ele morresse, pois aí eu não teria mais nada a fazer, mais nada a dizer: tudo se resolveria como num passe de mágica.

Mas ele sobreviveria o bastante para mais uma cirurgia, pois o câncer havia voltado, poucos anos depois. Nesta época, meu pai apareceu em São Paulo de supetão, no consultório onde atendia: veio se consultar, pedir a opinião do especialista: quem melhor senão o próprio filho?

Mostrou seus exames, no que eu concordei:

- Você deve ser reoperado...
- É a sua opinião? Devo operar então?
- Acho que deve ser operado o mais rápido possível.
- Obrigado.

Levantou-se, estendeu a mão, e foi embora.

- Pai, precisa de algo?
- Pode deixar que eu me viro.

“Pai”. Fazia uns dez anos que eu não falava essa palavra para a pessoa a quem é de direito.

Dois meses depois, ele então foi reoperado. A cirurgia complicou, ficou internado um tempão. Teve alta, ficou bem. Novamente, não fui visitá-lo.

Mais um tempo passou. E em poucos meses seria meu casamento. 

O convite teria o nome dele, logo acima do nome de minha mãe. 

Mas, sinceramente, por quê? Por que, se em todos esses anos nunca o considerei? Nunca o deixei participar da minha vida...? Nunca foi meu “pai”? Vou me dobrar à formalidade?

- Você vai convidar o pai para o teu casamento? Como vai ser?

Era a pergunta da minha irmã. Muito pertinente.

- Vou. E não sei.

Chegou o dia do meu casamento. No altar, meu pai estava lá, firme, saúde de ferro, visivelmente feliz e muito emocionado. 

Quando fui cumprimentá-lo, ao final da cerimônia, chorei copiosamente.

Pedi-lhe perdão.

(Por todos estes anos de imaturidade minha).

(Por não tê-lo aceitado).

(Por não tê-lo compreendido).

(Por não tê-lo visitado no hospital, nas suas cirurgias).

(Por ter desejado a sua morte inúmeras vezes).

“Não precisa. Perdão por quê, meu filho?"

domingo, 21 de junho de 2015

É tempo de colocar a podridão para fora...

É tempo de " eviscerar"...

Em algumas situações, o cirurgião deve abrir o abdome do paciente e "eviscerá-lo". Literalmente: colocar as "tripas para fora", seja para identificar a causa do que ali acontece ou mesmo limpar e lavar uma infecção extremamente grave.

Nesta hora, com o paciente aberto e invariavelmente sob risco de morte, analisando um panorama desolador, a gente se pergunta: o que faço com isso? E agora?

A decisão muitas vezes pode valer a vida.

Observando esta nossa vida que corre, parece que o meio médico (mas não só ele, basta ver o noticiário) está passando por esse momento, um tal de “tempo de eviscerar”.

Toda a nossa podridão moral está sendo exposta. Velhos esquemas estão caindo, com modos de  trabalhar sendo rapidamente superados. É um caminho sem volta.

Nossa mesquinhez, vaidade, ganância, incompetência, comodismo e inação, estão sistematicamente sendo desnudados.

Eu conheço o meio médico, e devo confessar que é duríssimo mover-se nele com um mínimo de retidão de caráter e de honestidade. Sofre-se demais. Fico me perguntando todos os dias se vale a pena ser decente.

A coisa começa na faculdade. Se for pública, pior ainda. Professores que nenhum aluno viu, que dão aulas uma vez ao ano, ou nem aparecendo, acumulando cargos e privilégios por amizade e apaniguamento. Confrontados, escondem-se na justificativa dos salários baixos ou no mérito pelo tempo...

Aliás, aprendemos desde o início de nossa formação que ser médico mais antigo confere automaticamente um status de não precisar fazer mais nada. O sangue já foi dado: agora é derramar o dos mais jovens. E essa sistemática vai longe...

Finda a faculdade, vem a prova de especialização, a tão sonhada residência médica. Muitas das provas são cartas marcadas: favorecem determinadas pessoas, com aulas e “dicas” para que alunos sejam aprovados em detrimento de outros.

E que dizer da residência médica em si? Dois a quatro anos de trabalho semi-escravo, vendido ao jovem médico como um “treinamento em serviço”. Este “treinamento” muitas vezes é dado por preceptores psicopatas, sádicos, ou apenas mal educados e mal preparados mesmo.

Faz parte do currículo da residência ter jornadas de trabalho desumanas, em hospitais pútridos e inseguros, sem tempo muitas vezes para comer, tomar banho, escovar os dentes.  Os residentes emagrecem, ficam pálidos, adoecem (mas claro que dizem para nós que isso é “necessário” e bem-vindo). Repete-se aqui a sistemática: somos torturados e aceitamos passar por isso pois daqui a um tempo seremos nós os torturadores: um dia estaremos no lugar de nossos chefes. Como quebrar este ciclo?

Terminada a especialização, onde vamos trabalhar? Em empregos que mimetizam a própria residência médica, na mesma pirâmide que pouco se move, onde a regra não é o mérito, mas sim o tempo, as relações de amizade, o apaniguamento, o interesse político e especialmente o econômico.

Entramos na roda viva dos empregos que desafiam a Física: vários ao mesmo tempo. Recebemos benesses de laboratórios, propina de fornecedores de materiais, presentes, mimos, comissões, cargos e “boquinhas” em serviços públicos (aliás nossa realidade no serviço público mereceria uma tese).

Passamos ao largo de juramentos e colocamos nossos interesses pessoais muito acima da ética para com o paciente.  Procrastinamos as condutas médicas, mantemos gente internada que não precisa, deixamos de operar, prescrevemos medicações desnecessárias, pedimos exames sem critério algum, ou com critérios pouco abonadores...

Escondemo-nos. Usamos a Medicina como meio, e não como fim. Longe de considerar o médico como um sacerdote, penso que devemos colocar a mão na nossa consciência e reavaliarmos nossas condutas.

E todas estas “tripas podres”, conhecidas há anos, mas fechadas dentro da barriga do nosso corporativismo, estão aos poucos sendo colocadas para fora. Mas muitos de nós, médicos acostumados a antigos paradigmas, não estamos atentos a esta revolução silenciosa.

Eu comemoro. Porém fico, do mesmo jeito que no centro cirúrgico, olhando e me perguntando: O que faremos destas “tripas podres”?

domingo, 3 de maio de 2015

Meu pai emprestado foi-se embora



- Um prato de comida a mais ou a menos, não nos fará mais pobres. Fica sossegado.
E deu de ombros, franzindo a testa, num só movimento, um certo desdém despreocupado.

- Mas... eu não vou dar muito trabalho pra vocês, mesmo?

- Não vai não, Marcos - responde meu tio.

Era o ano de 1996, eu vinha do interior de Santa Catarina, adolescente, caipira e matuto de tudo, para a "grande" capital do Estado, Florianópolis, cursar Medicina.

Iria morar na casa dos meus tios, Helge e Marina. Prometi ficar seis meses. E me deixaram ficar os seis anos, até minha formatura.

Tomei meus tios como meus pais, e acho que eles souberam bem disso. Sem eles, nunca teria sido médico. E como pais que me foram, afortunadamente emprestados, eu os considerava imortais. Pais não deveriam morrer nunca, certo?

Até que um dia, na manhã de uma terça-feira, 28 de abril de 2015, meu pai emprestado se foi. Foi embora para sempre, depois de sofrer alguns dias internado, lutando com complicações de uma cirurgia de câncer de esôfago.

Tio Helge era excêntrico, no senso estrito; extraordinário. Professor universitário, radiestesista, leitor ávido (dois a três livros por mês), de excelente humor, conselheiro ponderado, amigo, confidente, escritor e contador de histórias impagáveis.

Homem de simples trato, era impossível andar em Florianópolis a pé com ele, sem logo ser parado por alguém que o conhecia: "Professor Helge...!" E embarcava num longo bate papo.

Eu ainda não consegui chorar a sua perda. Porque simplesmente não consigo perdê-lo, não quero perdê-lo, não posso perdê-lo, tamanha a importância dele e de minha tia Marina em minha vida.

Para um moleque de 18 anos, cheio de espinhas e vazio de paternidade, que só sabia trabalhar e se sujeitar a "pais" mascarados, alienados e escroques, ele correspondia a muito do que imaginava numa figura de pai. Junto com meu querido avô Alberto, ele foi a figura paterna mais importante para mim.

Aprendi com ele e com minha tia Marina que, ao contrário do que muitos me diziam, e continuariam me dizendo por muito tempo, que a escolha da minha profissão tinha sido acertada: porque era minha, e só minha.

Pela primeira vez na vida eu tive consciência (e apoio) nas minhas escolhas. Meus tios me fizeram enxergar para dentro.

Aprendi que eu não lhes devia nada em troca, nunca. Nem por me sustentarem durante a faculdade. Isso, em outras palavras, significava que amor de verdade não cobra preço algum. É apenas dado. Demorei para entender e me acostumar com isso.

Meu pai emprestado foi-se embora, mas de uma certa forma muito especial ele ficou.


Para sempre.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Você passou mais rápido que o meu tempo...

Você passou mais rápido que o meu tempo...
Todo o começo de ano é assim. Você vai embora, e eu continuo aqui. Lembro de quando você chegou no hospital, há dois anos, o jovem "médico residente" (com todas as implicações do termo), o futuro especialista, inexperiente e cheio de expectativas.
Expectativas prontamente frustradas pela aspereza do treinamento cirúrgico. Treinamento que inclui horas em pé, muitas vezes sem dormir, sem comer, sem um banho sequer. Ouvindo, com cara fechada, broncas (de todos os lados), ironias de mau gosto, piadas jocosas, sem falar o tanto de impaciência e irredutibilidade que só a personalidade sui generis dos cirurgiões mais antigos sabe demonstrar para com o cirurgião mais novo.
Saiba, querido (e agora ex) residente, que só quem foi torturado sabe torturar. E todos os que lhe treinaram, já foram treinados - estiveram no seu lugar - embora queiram sempre passar a impressão de que já nasceram sabendo....
E eu fico aqui pensando, um tanto resignado, se agi ativamente para quebrar esse ciclo aparentemente eterno de estímulo pelo castigo / não-reconhecimento adequado ao mérito.
O ensino médico é apaixonante; treinar o novo cirurgião é quase um vício: uma sensação vaidosa onde um pouquinho de você é parte da formação de alguém (se eu fosse adequadamente remunerado eu só faria isso na minha vida, mas não conte para ninguém).
Hoje você terminou o seu ciclo de formação, e para o bem ou para o mal eu tive uma participação nisso. Você está diferente, mais maduro, mais centrado, com o couro certamente mais "curtido" pelo chicote da responsabilidade. Por vários chicotes.
Você passou mais rápido que o meu tempo.
Eu queria ter tido mais tempo para te acompanhar. Queria ter oferecido talvez mais cirurgias, ou mais conteúdo, ou ainda mais da minha paciência para você, e para mim também, pois saiba que aprendo imensamente nesta troca. Mas o ritmo da vida não é a gente que dita.
Eu cresci e amadureci tendo extrema dificuldade com figuras paternas erráticas. Tenho pai, e também procurei muitos "pais" aonde eles não existiam. Nunca pensei que haveria uma "cura" para essa angústia, para esse sentimento de insegurança constante.
"O que eu faço agora?"
"Para onde eu vou?"
"Como eu faço isso?"
"Está bem assim? Poderia ser melhor?"
"Por que fiz assim e não de outro jeito?"
"Fiz tudo certo, e tudo deu errado... O que acontece?"
"Quero desistir... Não aguento mais... Será que sirvo pra isso?"
"O que você acha disso?"
"Serei bom nisso um dia?
"Não me sinto seguro para fazer isso... Me ajuda?"
Estas foram algumas de suas muitas perguntas para mim nestes dois anos tão longos, tão curtos.
Repare que são as perguntas de um filho para um pai. Eu passei esse tempo todo tentando respondê-las, no melhor que pude, orgulhosamente preenchendo lacunas de mim mesmo.
Você, querido residente, de certa forma, é a minha cura.
Você passou mais rápido que o meu tempo.