quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

O ano das "paternidades"

IEste 2015 foi o ano do acerto das “paternidades”.

Em primeiro lugar, da paternidade reconhecida. 

“A guerra, para muitos de nós, é a cura”, disse o personagem Capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite. 

Operar e ensinar cirurgia eram a minha cura (e, confesso, continua assim...). O menino-adolescente que cresceu encontrando figuras paternas erráticas ou hipócritas, muito machucado tanto física como emocionalmente, encontrou na sala de cirurgia o palco ideal: de um lado, o corpo do paciente, inerte, “agredido” formalmente pela fria lâmina do bisturi; de outro, o médico-residente, o “filho” adotado por mim, seu “pai”, seu médico-preceptor. Ensinar cura pela agressão; tentar ser o melhor pai (que nunca tive) para um filho (que não é meu), e que precisa muito, muito de mim. Parece perfeito.

E esta paternidade foi reconhecida: meus alunos, da XIII turma de Medicina da UNICID, me homenagearam como mestre, ao lado de cabeças tão mais experientes e grisalhas... Meu muito obrigado aos meus filhos, que agora saíram do ninho e ganharam o mundo. Sentirei saudades.

Em segundo lugar, da paternidade conquistada. 

São quase dois meses do nascimento de nossa filhota Luísa, presente maior que minha mulher Patricia poderia me dar. E que presente! E que trabalho cuidar de alguém cuja vida depende integralmente de você, inexperiente e ainda por cima portador da sensação comum a muitos de nós médicos: a de que tudo de pior pode acontecer a qualquer momento com sua filha. Luísa nasceu de parto cesáreo, e confesso que planejávamos o parto normal, que não ocorreu, apesar da indução. 

Na hora de seu nascimento, eu só lembrava de quando eu era aluno do sexto ano, e estava estagiando na sala de parto do Hospital Universitário. Chegou uma moça, de seus trinta e poucos anos, gestante de nove meses, internando junto com seu esposo para indução do parto: mas o feto já estava morto, e nem lembro direito o porquê: ela já sabia disso, e estava num estupor, num estado de dissociação da realidade perfeitamente compreensível. Naquele momento fui seu obstetra, e administrava os mesmos comprimidos que minha esposa havia usado para a indução da minha filha. Depois de algum tempo, de um grito contido e uma contração forte, eis que emerge daquela fortaleza de mulher um bebê menino, acinzentado, inerte, que rolou pelo colchão como um boneco de madeira. Sem vida. E depois a placenta, enegrecida e fétida.

“Doutor, deixa eu pegar o meu menino”. 

Mas... Ele está... Morto... Ela sabia já...

Cortei o cordão umbilical, envolvi o corpinho perfeito e gorduchinho num lençol e o entreguei ao colo da mãe, que o balançava e ninava... “Meu filho, meu filho...”

De repente, ouvi um choro. O choro mais agudo e doloroso que jamais ouviria em toda a minha vida. 

Era o choro do pai. 
Quando Luísa nasceu, tive muito medo de ouvir este mesmo choro. Eu não ouvi, mas juro que na hora lembrei daquele pai, daquela mãe, daquele bebê provavelmente cercado de todas as expectativas e das melhores intenções do mundo. E pior, de certamente haver tantos e tantos bebês saudáveis mas não desejados e não queridos. O que será deles? 

Esta paternidade, conquistada, me conquista todos os dias. A amamentação, o banho, a troca de fralda, o choro, pequenas risadinhas, muita bochecha e amor. Repito o clichê: só quem tem um filho sabe o que é a felicidade de ter um filho.

Por último, e não menos importante, da paternidade redefinida.

O nascimento da netinha paulistana traria meu pai para dentro da minha casa: seria inevitável. E assim ocorreu.

Pela primeira vez eu o recebi em casa, dentre tantas e tantas casas em que vivi. Eu não tinha mais desculpas para não recebe-lo: ele tinha meu endereço e eu continuava morrendo de medo de não saber lidar com alguém que pouco lidei.

No fundo, além de conhecer a neta, ele veio também ver a homenagem de meus alunos: confete sempre foi o seu forte.

Eu fiquei sempre na defensiva, esperando o momento do desgaste e da tensão. Nada disso ocorreu.

Era apenas o meu pai, um senhor boquirroto de seus setenta e poucos anos, que chegou do interior de Santa Catarina após doze horas de viagem dentro de um ônibus, apenas para ver seu filho e conhecer sua neta. Apenas e especialmente isto.

Pela primeira vez consegui fazer um café para ele, e comprar seu pão na padaria, e – estranhamente - nem por um segundo desejar que ele fosse embora ou que eu mesmo desaparecesse. Não havia o lugar para o embora.

Pela primeira vez eu o vi sentado, fazendo uma refeição, na minha casa, falando sobre minhas coisas, sobre nossas coisas, assuntos prosaicos e aqueles nem tanto.

Pela primeira vez eu o recebi em algum evento sem passar vexame. Sem sentir vergonha de mim, nem dele.

Quando o deixei na rodoviária, desejei secretamente que ele ficasse mais um pouco. Sabia, também secretamente, que mais tempo não era desejável – o racional se impôs e preferi que o momento ficasse congelado no que considerei ideal. Meu pai conseguiu ser pai, e eu consegui ser seu filho.

Em 2015, meus filhos-alunos me chamaram de “pai”. (Na frase de um deles, que nunca esquecerei: “O senhor não me ensinou Medicina, ensinou a ser Médico”).

Em 2015, tornei-me pai de verdade e ganhei uma filha que nos encanta a cada dia.

Em 2015, consegui ser filho de um pai de verdade, mesmo que por um breve momento.

Em 2015, muita coisa bastante bagunçada se ajeitou, meio sem querer.

Que venha 2016.