domingo, 18 de outubro de 2015

A maior diarréia da minha vida

No Dia do Médico, eu me lembrei da maior diarreia da minha vida...

Havia acabado de me formar em 2002, e logo seria chamado para servir ao Exército, como oficial médico, na cidade amazonense de Tabatinga, fronteira com o Peru e a Colômbia.

Recém-formado, ainda na fralda, cru e inocente de tudo, fui lotado no Hospital da Guarnição. Minha função (e a de outros médicos iguais a mim, vindos de todos os cantos desse Brasilzão) era a de ser “médico”, ou seja, atender e resolver o que aparecesse na frente.

Eu já havia passado na prova da especialização em cirurgia geral, e isso na prática não me credenciava a nada, naquela região carente de tudo.

Casos mais graves? Três dias de barco até Manaus. Impraticável. Impossível.

Era preciso ser médico.

Era preciso ser pediatra, ginecologista, obstetra, cirurgião, clínico, intensivista, eventualmente anestesista e psiquiatra.

Tive sorte: junto com meu recém-amigo Fabio Leonetti e o Tenente Messias (in memorian), este o único cirurgião formado, ficamos nós três responsáveis pela “Cirurgia” de todo o Alto Rio Solimões.
Éramos, naquele hospital de 26 leitos, a referência para várias cidades ribeirinhas, à época em torno de 80 mil pessoas.

Durante aquele ano de 2003, nossa rotina - agitada e extenuante - de partos, cirurgias, traumatismos, atendendo recém-nascidos, crianças, adultos e idosos - transcorria sem grandes sobressaltos: bem ou mal, havia um cirurgião e alguns meninos-médicos curiosos e esforçados.

Mas um dia, em novembro, chegou um telegrama na Guarnição: era a transferência do Tenente Messias. O único cirurgião “de verdade” logo iria embora para Salvador, sua terra natal.

E ele foi.

Ficamos sozinhos, eu e o Fabio, a “retaguarda cirúrgica”.

O Exército, na sua infinita desorganização, não previa transferência para a cidade de nenhum outro cirurgião até o início do ano seguinte.

Eu me pegava, todas as noites, pedindo para que não aparecesse nenhum caso grave naqueles dois longos meses que ainda faltavam para a nossa transferência.

Toda a ligação telefônica era um sobressalto, seguida de um alívio até... bem, até a próxima ligação. Passamos um mês ilesos.

Até que, num plantão do hospital, o soldado me chamou.

- Tenente Marcos, rádio do pelotão de fronteira, é o Tenente Guilherme!

Guilherme era jovem médico, como eu, e atendia num destacamento do exército isolado na floresta. O acesso era feito por barco, avião da Força Aérea ou excepcionalmente de helicóptero. Não deveria ser nada de mais.

- Marcos, estou aqui com o recruta João [nome fictício], 17-18 anos de idade, acho que está com apendicite...

A transmissão do som do rádio era sofrível.

- Ele está grave?
- Mais ou menos. Vou ter que transferi-lo de helicóptero, acho que não é prudente deslocamento por barco. O próximo avião aqui só no mês que vem.
- Ok, pode mandar...
- Já mandei... Ahahaha. Tem algum cirurgião aí? 
- Não chegou ninguém ainda, só estamos eu e o Fabio.
- Xiii, boa sorte! Pode colocar no currículo que eu te mandei a primeira apendicite da vida!!

Eu ri da brincadeira séria.

Apendicite, inflamação do apêndice, é uma doença de tratamento cirúrgico de urgência. Pode se apresentar como um caso leve ou extremamente grave.

As horas não passavam. Chegado o recruta, eu o examinei e confirmei o diagnóstico. Não tínhamos nenhum exame complementar. E nem era preciso.

Chamei meu amigo e começamos a cirurgia.

Eu suava frio.

Lembro de não ter falado durante o procedimento. Não sei nem se respirei ou pisquei os olhos.

Os dois médicos recém-saídos da faculdade, operando sem treinamento específico, no meio da Amazônia. Era o que havia disponível. Era o possível.

A cirurgia terminou no finalzinho da tarde, e havia transcorrido bem.

Indo a pé para casa, eu parecia carregar minha cabeça fora do corpo. Não pensava em absolutamente nada. Tirei a farda, tomei um banho.

E comecei a suar novamente. Depois as cólicas. E a diarreia. Vários episódios, um milhão de episódios. Fiquei umas duas horas no banheiro.

“Operamos sozinhos.”
“Um menino de dezoito anos.”
“Não temos formação.”
“E... se acontecer alguma coisa com ele? Re-opero? Transfiro? A quem me reporto? A quem pedirei ajuda, opinião?”
“Fiz uma incisão muito grande!”
“Não temos UTI nem antibióticos caso ele precise.”
“Será que não estou esquecendo de alguma coisa?”
“Conferi tudo?”
“E se não foi o suficiente?"
"E se...? E se...? E se ele morrer...?"

E dá-lhe mais diarreia. Eu estava tão exausto e imundo que tomei mais um banho e fui dormir, bebendo apenas água.

Acordei no meio da madrugada, sonhando que o paciente havia tido uma hemorragia interna, e que os pontos haviam soltado, e que a artéria do apêndice arrebentou...

Liguei para o hospital. Eram duas, ou três, ou quatro da manhã.

- Pois não, tenente!
- Como está o recruta João?
- Está ótimo, sem dor, com os sinais vitais normais, etc.
- Coloque o paciente na semi-intensiva.

“Semi-Intensiva” era um eufemismo para um leito no hospital que tinha uma atenção melhor da enfermagem.

- Mas tenente, precisa mesmo...?
- Por favor, coloque... Por favor... Agora...

Liguei para o meu amigo.

- Fabio, eu sonhei que o João complicou, que abriram os pontos, que sangrou.
- Cara, não fala isso não, eu acredito muito nestas coisas... Pára com isso.
- Vou para lá agora. Não consigo dormir.
- Rato branco – era esse o meu apelido, dado pelo Ten. Messias – deixa que eu vou. E te aviso.

Fiquei acordado até o retorno da ligação.

- Ele está ótimo. Você o colocou na “semi”??

E assim o pós-operatório do paciente transcorreu sem problemas.

Duas semanas depois eu o recebi para retirada dos pontos. Realmente tinha sido uma incisão exagerada e altamente “não estética”.

Era, sim, um menino de dezoito anos, simples e semi-analfabeto, de origem indígena, como tantos outros... Ser soldado do Exército naquelas paragens correspondia a uma ascensão social impensável para a maioria da população.

- Tenente Marcos, eu não sabia que essa doença que eu tive podia matar. Minha mãe falou que teve uma amiga que morreu disso, de apendicite!

- É verdade, pode sim – aquiesci. Mas o seu caso não foi tão grave assim...

- Mas poderia ter morrido se senhor não me operasse. O senhor me permite agradecer?

No rígido código militar, um subalterno nunca, sob nenhuma hipótese, pode fazer menção de cumprimentar um oficial sem permissão deste.

Eu estendi minha mão e o abracei.

- Muito obrigado, tenente, por tudo o que o senhor fez por mim.


Mal sabe o recruta João que eu até hoje agradeço por tudo o que ELE fez, e faz, por mim. 

Todos os dias.