domingo, 21 de junho de 2015

É tempo de colocar a podridão para fora...

É tempo de " eviscerar"...

Em algumas situações, o cirurgião deve abrir o abdome do paciente e "eviscerá-lo". Literalmente: colocar as "tripas para fora", seja para identificar a causa do que ali acontece ou mesmo limpar e lavar uma infecção extremamente grave.

Nesta hora, com o paciente aberto e invariavelmente sob risco de morte, analisando um panorama desolador, a gente se pergunta: o que faço com isso? E agora?

A decisão muitas vezes pode valer a vida.

Observando esta nossa vida que corre, parece que o meio médico (mas não só ele, basta ver o noticiário) está passando por esse momento, um tal de “tempo de eviscerar”.

Toda a nossa podridão moral está sendo exposta. Velhos esquemas estão caindo, com modos de  trabalhar sendo rapidamente superados. É um caminho sem volta.

Nossa mesquinhez, vaidade, ganância, incompetência, comodismo e inação, estão sistematicamente sendo desnudados.

Eu conheço o meio médico, e devo confessar que é duríssimo mover-se nele com um mínimo de retidão de caráter e de honestidade. Sofre-se demais. Fico me perguntando todos os dias se vale a pena ser decente.

A coisa começa na faculdade. Se for pública, pior ainda. Professores que nenhum aluno viu, que dão aulas uma vez ao ano, ou nem aparecendo, acumulando cargos e privilégios por amizade e apaniguamento. Confrontados, escondem-se na justificativa dos salários baixos ou no mérito pelo tempo...

Aliás, aprendemos desde o início de nossa formação que ser médico mais antigo confere automaticamente um status de não precisar fazer mais nada. O sangue já foi dado: agora é derramar o dos mais jovens. E essa sistemática vai longe...

Finda a faculdade, vem a prova de especialização, a tão sonhada residência médica. Muitas das provas são cartas marcadas: favorecem determinadas pessoas, com aulas e “dicas” para que alunos sejam aprovados em detrimento de outros.

E que dizer da residência médica em si? Dois a quatro anos de trabalho semi-escravo, vendido ao jovem médico como um “treinamento em serviço”. Este “treinamento” muitas vezes é dado por preceptores psicopatas, sádicos, ou apenas mal educados e mal preparados mesmo.

Faz parte do currículo da residência ter jornadas de trabalho desumanas, em hospitais pútridos e inseguros, sem tempo muitas vezes para comer, tomar banho, escovar os dentes.  Os residentes emagrecem, ficam pálidos, adoecem (mas claro que dizem para nós que isso é “necessário” e bem-vindo). Repete-se aqui a sistemática: somos torturados e aceitamos passar por isso pois daqui a um tempo seremos nós os torturadores: um dia estaremos no lugar de nossos chefes. Como quebrar este ciclo?

Terminada a especialização, onde vamos trabalhar? Em empregos que mimetizam a própria residência médica, na mesma pirâmide que pouco se move, onde a regra não é o mérito, mas sim o tempo, as relações de amizade, o apaniguamento, o interesse político e especialmente o econômico.

Entramos na roda viva dos empregos que desafiam a Física: vários ao mesmo tempo. Recebemos benesses de laboratórios, propina de fornecedores de materiais, presentes, mimos, comissões, cargos e “boquinhas” em serviços públicos (aliás nossa realidade no serviço público mereceria uma tese).

Passamos ao largo de juramentos e colocamos nossos interesses pessoais muito acima da ética para com o paciente.  Procrastinamos as condutas médicas, mantemos gente internada que não precisa, deixamos de operar, prescrevemos medicações desnecessárias, pedimos exames sem critério algum, ou com critérios pouco abonadores...

Escondemo-nos. Usamos a Medicina como meio, e não como fim. Longe de considerar o médico como um sacerdote, penso que devemos colocar a mão na nossa consciência e reavaliarmos nossas condutas.

E todas estas “tripas podres”, conhecidas há anos, mas fechadas dentro da barriga do nosso corporativismo, estão aos poucos sendo colocadas para fora. Mas muitos de nós, médicos acostumados a antigos paradigmas, não estamos atentos a esta revolução silenciosa.

Eu comemoro. Porém fico, do mesmo jeito que no centro cirúrgico, olhando e me perguntando: O que faremos destas “tripas podres”?