Surge uma nova espécie de gente: o Homo desconexus
Morar numa cidade neurotizante como São Paulo exige uma disciplina rígida para que a metrópole não te engula por completo. Do contrário, passamos a viver como a nova horda de hominídeos que há sete ou oito anos vejo crescer rapidamente por aqui: chamo de Homo desconexus, ou o homem desconectado.
Ao contrário do que eu imaginava, o excesso de informações da aldeia global veio revelar (e não criar) esta espécie. Embora hiperconectados com o mundo exterior, estamos cada vez mais desconectados de nós mesmos. Vou tentar explicar com o que vejo no cotidiano.
O Homo desconexus nunca está fazendo uma coisa só. Aliás, ele não consegue se concentrar em fazer uma coisa apenas, e no fundo não faz nada realmente direito do que se propõe a fazer.
Caminhar, por exemplo. Munido de seu smartphone, tablet ou qualquer coisa que o valha, não presta atenção na caminhada. Tropeça, anda ou devagar ou muito rápido, esbarra nos outros de sua espécie sem pedir desculpas (o esbarrar virou coisa normal). Geralmente passa do ponto onde gostaria de ir e não reconhece onde está quando pára a olhar o movimento.
Parado no trânsito, isolado no seu carro fechado, cheio de ar condicionado, escuta a rádio que lhe fala histericamente demais, e fala de mais... trânsito. Ou de notícias importantes como a queda na Bolsa da Sérvia ou do novo namorado da atriz do momento.
Tal espécie conversa sempre com dois de seus pares ao mesmo tempo, e pode interromper uma conversa no meio de outra, sem cerimônia. Como nunca presta atenção, apenas nas duas ou três últimas palavras, fica impaciente para desligar e continuar a outra não-conversa. Muitas vezes liga novamente para saber o que "conversou".
Quando te encontra no elevador, faz questão de baixar a cabeça ou olhar para o teto. Quando muito, fala do tempo.
No restaurante, na reunião, no boteco ou no aniversário, chega atrasado sempre. No fundo acha bonito isso, considera-se um ocupado importante.
Não olha para quem o serve, não olha para a própria comida, não olha para o interlocutor. E fala de trabalho, de dinheiro, de carro importado, mostra o celular de última geração, e coloca tudo isso nas redes sociais.
Não se importa com a comida ruim, ou se o vinho é caro e nacional, se a mesa ao lado está a apenas 15 cm dele com gente tão próxima e tão distante.
O Homo desconexus é impaciente, mas seletivamente. Embora demonstre pressa para tudo, reserva sua ira para os momentos mais singelos: a fila do "valet", o caixa do supermercado, a consulta médica, o aeroporto e o cinema.
Aliás, a consulta médica nem mais se inicia com um pedido de desculpas por falar ao telefone. Porque falar ao telefone já é corriqueiro. E interromper a consulta para atender ao telefone também o é.
E o cinema virou o lugar mais imprescindível do mundo para se comer pipoca - de boca aberta.
Ele é, por excelência, um pagador de contas. São tantas e tão diversas que nem sabe direito e estão sempre a vários passos a frente: isso significa dizer que as férias de dois anos atrás estão sendo pagas ainda.
Sua casa sempre tem algo por fazer. Nunca termina uma reforma, não conserta aquele vazamento, não troca sofá velho e puído. Não porque não tenha dinheiro, mas porque não tem quem o faça. E se tiver alguém que o faça, não será ele - sua casa é nada mais que dormitório, e dos caros. A cozinha é um cômodo incômodo: o interior da geladeira é uma incógnita, lugar seguro para se guardar um cadáver.
Embora não reconheça, os "outros" da mesma espécie têm papel relevante na sua vida, estando sempre à espreita: julgando sua roupa, seus sapatos, suas atitudes e sua barriga; tendo cônjuges, casas e carros melhores, férias mais espetaculares e bebidas mais excêntricas e fotogênicas, barrigas mais chapadas e durinhas.
O Homo desconexus é um reclamador por natureza. Reclama que não tem tempo para nada, que deveria se alimentar melhor, que paga academia e convênio médico caros para nunca usar. Suspeita que seu dia tem menos horas que os dos outros, porque sempre trabalha demais.
E assim vive, sobrevivendo, a reboque de sabe-se-lá-o-quê, sem meio e sem fim.